Pecadores (2025)

Quando o horror tem cor, ritmo e memória

SE VOCÊ É SENSIVEL A PEQUENOS ~SPOILERS~, NÃO LEIA O TEXTO SE AINDA NÃO ASSISTIU AO FILME

Esse foi um dos filmes que estava mais ansiosa para assistir, tentei não ver ou ler nada sobre e recomendo muito não procurar saber tanta coisa sobre ele. Para mim, vai ser difícil escrever sem falar tudo que queria, de toda a emoção e impacto das cenas que foram feitas para causar esse tipo de sentimento e sensação. Eu queria poder escrever “perfeito” em toda minha resenha, mas, como não dá, vou tentar ser um tanto genérica e ainda assim colocar você a par do que presenciei na tela do cinema. 

Desde os primeiros acordes abafados de um blues que ecoa como lamento ancestral, Pecadores nos convida a entrar em uma América ferida, mas que ainda é pulsante. Ryan Coogler, que já provou saber navegar por narrativas grandiosas e íntimas com Fruitvale Station: A Última Parada (2013), Pantera Negra (2013/2022) e Creed (2015), agora mergulha de cabeça em sua primeira incursão no horror com um filme que respeita o gênero e brinca de forma bastante séria com seus signos, simbolismos e sua pluralidade. Vampiros, igrejas, música maldita, espiritualidade negra, traumas históricos, relações humanas e opressões se entrelaçam num conto brutal, épico e melancólico sobre o sangue que construiu aquele país e o sangue que ainda se recusa a secar.

Ambientado nos anos 1930, em plena era Jim Crow, Pecadores acompanha a trajetória de Smoke e Stack, irmãos gêmeos e ex-soldados da Primeira Guerra, ambos interpretados de forma magistral por Michael B. Jordan. Eles retornam à sua cidade natal em busca de um novo começo com algum dinheiro na mala e o desejo de deixar o passado agitado em Chicago para trás, eles compram de um branco um antigo galpão e um terreno e decidem abrir um bar onde comida, bebida e o bom e velho blues se misturam como promessa de futuro. Mas o recomeço logo se vê ameaçado: há algo estranho pairando sobre a cidade que eles amam, uma presença silenciosa que transforma memórias em pesadelos. À medida que os irmãos tentam reconstruir suas vidas, acabam descobrindo que a verdadeira ameaça não ficou no passado, ela está à espera, faminta, no coração da comunidade. O elenco reúne nomes fortes como Hailee Steinfeld, Omar Benson Miller, Li Jun Li, Delroy Lindo, Wunmi Mosaku, Jayme Lawson, Jack O'Connell e o estreante Miles Caton.

Por mais que o elenco seja brilhante, a estrela principal aqui é a música, digo, o blues que vai muito além de acordes e melodias. Aqui ele é corpo, é lamento, é feitiço. Ele dita o ritmo sensual e sexual da narrativa, embalando os encontros e desencontros dos personagens, mas também funciona como uma pulsação espiritual que atravessa gerações. É um som que carrega a dor do cativeiro, a memória do açoite, o desejo proibido e a resistência nas entrelinhas. Coogler entende o blues não como trilha sonora, mas como entidade, algo que vive, que chama, que sangra. É ele quem guia os passos dos vivos e desperta os mortos (ou o mal).

Já que estamos falando de estrelas e brilhos, Steinfeld, como Mary e Mosaku, como Annie, interpretam os interesses amorosos dos gêmeos. Mesmo que cada uma carregue seu toque especial, é Annie que quero destacar aqui. Ela é, digamos, a bruxa, a alma dessa história, a guardiã de um saber antigo que assombra e cura ao mesmo tempo. Sua relação com um dos gêmeos traz algo raro às telas, especialmente em uma produção grandiosa: o afeto possível, desejado e sensual entre um protagonista masculino dito galã e uma mulher que foge dos padrões normativos de beleza estabelecidos por Hollywood. E, claro, fiquei deveras feliz que tenham pensado, e mais ainda, concretizado isso. O cinema hollywoodiano por tanto tempo nos acostumou com o estereótipo da mommy, aquela mulher negra retinta maternal, dessexualizada, sempre coadjuvante e dedicada a amparar os outros. Annie, por outro lado, é desejo, é poder, é mistério e é, acima de tudo, protagonista de sua própria narrativa afetiva e espiritual.

Temos também Sammy, interpretado por Miles Caton em seu primeiro papel de destaque, é uma das revelações mais marcantes de Pecadores. Como o jovem primo de Smoke e Stack, Sammy Moore é o sangue novo da família, aquele que carrega no peito, nos dedos e na voz, o peso da tradição, mas também o frescor da esperança. Com um talento musical impressionante, ele canta com o coração aberto, transformando cada dedilhado no violão em um gesto de pura entrega. Sua voz, ora suave, ora rasgada de emoção, não apenas encanta o público dentro do ambiente do filme, como também nos envolve do lado de cá da tela. É o tipo de performance que atravessa, é intensa, delicada e viva. Miles Caton tem presença, tem carisma e, principalmente, tem aquele brilho raro que faz a gente querer vê-lo mais e mais. Um verdadeiro achado.

É muito bom ver Coogler transformar esse cenário gótico-sulista num campo simbólico potente. Como fã declarado de John Carpenter e do cinema clássico de horror, ele sabe jogar com convenções de gênero e sabe também quando e como rompê-las. A estrutura do filme lembra a fragmentação e o simbolismo onírico de Inverno de Sangue em Veneza (1973), como o tempo dilatado, os sinais que se acumulam, e a lógica do terror que é menos sobre sustos e mais sobre presságios. Há uma atmosfera densa, um suspense que pulsa, um mal-estar contínuo que quase saltam da tela e prepara o terreno para a explosão sobrenatural sem nunca deixar de estar enraizada no mundo real, ou seja, no racismo, na violência sistêmica, no trauma coletivo e geracional.

Um dos elementos mais fascinantes do longa é como ele se apropria do mito da "música maldita", tão presente na lenda de Robert Johnson e no simbolismo do blues. Aqui, a canção que retorna como maldição não é um pacto com o diabo, mas sim com os mortos, com os antepassados, com as memórias que não foram enterradas. A ideia de que a música negra carrega um poder espiritual incômodo, capaz de evocar forças e revelar verdades, atravessa toda a narrativa. E Coogler, ao invés de reforçar o estigma da “arte maldita”, a exalta como forma de resistência. O que atrai o mal não é a música é o desejo da sociedade de silenciar sua verdade.

Nesse ponto, a meu ver, Pecadores dialoga diretamente com filmes de dito “lado b” do blaxploitation como Ganja & Hess (1973) e Lorde Xangô (1975), em que a espiritualidade negra, frequentemente marginalizada pelo cristianismo dominante, ressurge como força mística legítima, complexa e ameaçadora para quem tenta apagá-la. A escolha de começar e praticamente encerrar o filme dentro de uma igreja reforça esse embate. O sagrado, aqui, não é universal, é território de disputa. A cruz no altar não protege contra os vampiros, mas o som de um tambor ou uma magia ancestral, sim.

A maquiagem do filme, assim como dos vampiros, sutil mas perturbadora, é assinada por Mike Marino, o mesmo artista por trás dos efeitos em Sala Verde (2015), produção muito cara a Coogler e que particularmente gosto muito também. Ela traz uma fisicalidade crua, quase infecciosa. Eles não brilham e não seduzem, mas sim apodrecem aos poucos, como a própria ideia de pureza racial e moral que dizem defender. O figurino, por sua vez, é assinado por Ruth E. Carter, antiga parceira já de Coogler e vencedora do Oscar duas vezes por Pantera Negra e Pantera Negra: Wakanda Forever. Seu trabalho aqui é igualmente expressivo. Os trajes contam histórias, os ternos bem cortados revelam o rigor estético de quem já andou muito pelo mundo, os trajes da comunidade negra misturam o rigor cristão com discretos detalhes de matriz africana, como colares, tecidos e amuletos quase invisíveis aos olhos ocidentais.

No fim, Pecadores não é apenas um filme de vampiro. É uma história sobre feridas abertas, espiritualidades reprimidas e o custo de esquecer os nomes dos nossos mortos. Coogler não quer apenas assustar, quer fazer sangrar e chorar. E faz isso com equilíbrio e generosidade: ao mesmo tempo em que ilumina as dores e heranças da população negra, ele também não esquece do passado dos irlandeses, evocando sua ancestralidade através das canções melancólicas que atravessam o filme como lamentos antigos. Seu filme é, antes de tudo, um ritual, um chamado para que o horror volte às suas raízes, não como entretenimento escapista, mas como ferramenta de revelação. Eu tive que me conter muito na cabine para não gritar, chorar ou aplaudir, principalmente em uma determina sequência deveras rica, emocionante e cheia de simbolismos. E nesse sentido, sua obra-prima não só morde, ela também marca.




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