Oeste Outra Vez (2024)

Semana passada pude, enfim, assistir ao filme no Cinema da Fundação Derby. Estava muito afim de ver numa tela grande e consegui, pois só lia elogios de quem já tinha visto. Desde então venho ensaiando algumas palavras de pensamentos que ficaram comigo logo após a sessão. Principalmente de uma leva interessante dessa reinvenção ao gênero faroeste que acontece aqui no Brasil. As paisagens secas empoeiradas podem até ser parecidas, mas aqui o estilo ganha seu próprio sotaque. É como se ele fosse ganhando um filtro tropical a cada exemplar. Foi isso que senti no filme de Erico Rassi e aí escrevi umas palavras só para não deixar esse sentimento preso.

No sertão de Goiás, homens rudes e incapazes de lidar com suas próprias fragilidades vivem sob o peso da solidão e do abandono. As mulheres, que um dia representaram afeto e estabilidade, vão embora. E o que sobra é uma mistura de tristeza, amargura e uma masculinidade ferida que explode em violência. 

Oeste Outra Vez, longa de estreia de Erico Rassi, mergulha nesse universo árido com sensibilidade e firmeza, expondo com precisão a crise de uma masculinidade que não sabe ser senão força, mesmo quando tudo o que ela mais revela é medo.

Com um elenco de grandes presenças formado por Ângelo Antônio, Antônio Pitanga, Rodger Rogério, Daniel Porpino, Adanilo e Babu Santana, o filme constrói um retrato fragmentado, mas profundamente conectado, de homens à deriva. Aqui não há um protagonista definido, mesmo o mote da trama sendo Totó e Durval, cada personagem carrega sua própria história de abandono, frustração e silêncio. São homens que foram deixados por seus amores, mas também por si mesmos, pela própria capacidade de sentir e se expressar. Tentam resistir ao vazio deixado pelas mulheres que partiram, mas o que emerge é o ressentimento, que se manifesta em agressões, beberagens, competições tolas e brigas sem sentido. Ainda que vivam trajetórias diferentes, todos compartilham um mesmo mal-estar: uma masculinidade em crise, que não sabe como existir sem o controle e implode quando confrontada pela ausência.

Boa parte dessa tensão encontra palco nos botecos de beira de estrada, espaços repetidos e simbólicos no filme, cercados por homens que bebem calados ou brigam alto, ocupando o tempo com jogos, piadas e olhares perdidos. Esses bares funcionam como pequenos teatros da decadência afetiva: lugares onde a masculinidade encontra eco em outros corpos tão despedaçados quanto o próprio. Inspirado por lembranças e observações da própria vivência em Goiás, Rassi transforma esses ambientes em metáforas de um tipo de cultura que se sustenta na presença coletiva, mas que não permite trocas verdadeiras. O boteco é refúgio e armadilha, confraria e cela.

Mesmo ausentes em cena, a única mulher que aparece no filme surge brevemente no início, apenas para desaparecer dois segundos depois e nunca mais voltar, elas permanecem como forças centrais da história. Estão em lembranças borradas, em telefonemas que nunca se completam, em frases interrompidas e, sobretudo, no silêncio profundo que deixaram ao partir. São ausências que gritam. Toda a motivação dos homens parece girar em torno do vazio que essas mulheres deixaram: o vínculo que se perdeu, a intimidade que se desfez, a possibilidade de afeto que já não existe. E é esse luto silencioso nunca nomeado, mas constantemente sentido que se transforma em raiva, em frustração e em violência. Lembrei muito de Presença, de Steven Soderbergh, da figura invisível que move a narrativa que, mesmo fora de campo, permanece como motor de todas as ações.

Esse mergulho no sertão como território emocional também aproxima Oeste Outra Vez de Sertânia (2020), de Geraldo Sarno. Se no filme de Sarno acompanhamos um ex-cangaceiro às portas da morte, revisitando suas memórias e delírios num sertão quase onírico e psíquico, em Rassi temos um cenário igualmente seco e melancólico, mas enraizado no presente e na realidade. Ambos os filmes desmontam os mitos masculinos do cangaceiro, do homem de honra e do do sertanejo invencível. Nas duas obras o que resta é o mesmo: culpa, abandono, arrependimento, silêncio. Os dois diretores parecem menos interessados nas figuras heróicas e mais atentos às rachaduras de suas armaduras, aos homens que desmoronam quando não há mais ninguém para sustentar suas fantasias de poder.

A direção de arte de Carol Tanajura dá materialidade a esse deserto emocional, casas desabitadas, interiores escuros, objetos velhos, amontoados de sujeiras e paisagens amplas que paradoxalmente aprisionam. Cada detalhe visual contribui para o peso simbólico de um mundo que gira em torno daquilo que falta e que não se sabe nomear. A fotografia estourada, que favorece o contraste entre luz e sombra, também intensifica essa sensação de um tempo parado, onde o passado insiste em permanecer.

Ao apostar em uma narrativa de ecos, onde gestos se repetem, falas retornam com pequenas variações e tudo parece prestes a ruir, Oeste Outra Vez não entrega redenção nem catarse, mas entrega observação. E é justamente aí que reside sua força, na recusa a soluções fáceis, no desconforto de olhar para feridas abertas sem propor curativos.

É mais uma vez o cinema brasileiro demonstrando sua coragem estética e temática. Pouco preocupado em agradar e mais em provocar. Ao explorar essa masculinidade em colapso, a ausência que grita mais do que a presença e os espaços onde o tempo parece girar em falso, o filme se firma como um retrato honesto, inquieto e atento de um Brasil profundo, afetivamente esvaziado, mas ainda cheio de histórias por contar.



Comentários

Postar um comentário

Form for Contact Page (Do not remove it)

Nome

E-mail *

Mensagem *

Instagram