Iracema - Uma Transa Amazônica (1974)

Assistir hoje a Iracema - Uma Transa Amazônica é como tropeçar numa aula de história que nunca nos deram, daquelas que revelam as feridas que a escola preferiu maquiar com discursos sobre progresso e integração nacional. O filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna não tem a estética polida do cinema tradicional, mas é justamente essa crueza que lhe dá força. Feito em 1974, em pleno regime militar, quando o Brasil vivia sob a retórica do “milagre econômico”, o longa mistura ficção e documentário para desmontar a propaganda oficial que vendia a Amazônia como fronteira de um futuro próspero. Só que o que se vê na tela é o rastro de destruição que esse futuro custou e ainda custa.

De trama simples, mas simbólica, temos Tião Brasil Grande, um caminhoneiro do RS, interpretado por Paulo César Pereio, que cruza as estradas da Amazônia com seu caminhão, animado pelas promessas de crescimento. Em seu caminho, encontra Iracema, uma jovem indígena prostituta de 15 anos vivida por Edna de Cássia, que passa a acompanhá-lo em sua rota. Enquanto Tião celebra a abertura da Transamazônica e se diz orgulhoso de estar “levando progresso”, Iracema é deixada à margem, observando, sentindo e sofrendo as consequências de tudo isso. A jornada dos dois funciona muito como uma metáfora para o país: de um lado, o colonizador moderno, ainda eufórico com sua missão civilizatória; do outro, a terra e seus povos, sendo engolidos por uma lógica que transforma tudo em mercadoria.

O impacto do filme vem não só da ficção, mas da justaposição com imagens reais. O desmatamento, os incêndios, as terras tomadas à força, os depoimentos de pessoas reais, quase como um soco. E dói perceber como, em 2025, seguimos convivendo com os mesmos problemas. A Iracema de hoje pode não estar num filme, mas continua existindo nas comunidades indígenas ameaçadas, nas meninas vulneráveis à beira das estradas, nos povos que resistem enquanto são tratados como obstáculos por projetos de lei que visam “liberar” ainda mais a exploração da Amazônia.

É impossível assistir ao filme hoje e não pensar no “PL da devastação” ou no tanto de medidas que já existem para flexibilizar cada vez mais a destruição ambiental, ou legalizar a grilagem, ou autorizar mineração em terras indígenas e reduzir cada vez mais áreas de proteção. O discurso é praticamente o mesmo de cinquenta anos atrás: o desenvolvimento como justificativa para o avanço predatório. Só que agora, num cenário de emergência climática global, o custo dessa lógica se torna ainda mais gritante. A obra de 1974, nesse contexto, deixa de ser apenas denúncia e se torna também um aviso. Um arquivo vivo que nos mostra onde tudo começou e nos alerta sobre para onde ainda estamos indo.

A força de Iracema está também na presença de Edna de Cássia, cuja atuação carrega a doçura, a dor e a perda da personagem de forma desconcertante. Iracema não é uma heroína clássica, mas um corpo vulnerável e real, captado sem filtros, sem maquiagem, sem roteiro fechado. Em contraste, Pereio constrói Tião como uma figura complexa, às vezes quase simpática, mas sempre profundamente marcada pelo machismo, pela ignorância e pela convicção cega de que o progresso é um caminhão que precisa continuar andando, não importa quem fique para trás.

Por tudo isso, Iracema - Uma Transa Amazônica continua sendo um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro. Não só por sua coragem estética e política, mas também por sua capacidade de ecoar através do tempo. O país que ele mostra ainda existe, embora tente se esconder atrás de novas siglas e discursos modernizados. Assistir a esse filme acaba sendo uma forma de entender que o tempo passou, mas as estruturas continuam as mesmas. Agora, restaurado e distribuído pela Gullane+, o filme retorna aos cinemas no dia 24 de julho, celebrando os 50 anos desde sua primeira exibição. Um relançamento que não é apenas uma homenagem à sua história, mas um lembrete urgente de que aquilo que foi documentado em 1974 ainda nos assombra em 2025. É um convite, ou melhor, um chamado, para ver, ouvir e não esquecer.





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