Entre o giallo e o 007, uma fantasia caleidoscópica do passado que brilha por dentro
Assisti O Brilho do Diamante Secreto como quem vai visitar uma casa já conhecida, mas que a cada retorno encontra alguns móveis fora do lugar. Bruno Forzani e Hélène Cattet são desses diretores que não se contentam em contar só uma história, somos puxados para dentro dela, como se estivéssemos girando dentro de um carrossel de imagens, sons e texturas. Já conhecia o trabalho do casal, acompanho desde Amer (2009), que é uma carta de amor ao giallo mais sensorial, e desde então me tornei cúmplice desse cinema que prefere o toque ao verbo, o impacto visual à explicação. Ver esse novo filme deles na tela grande foi como cair num túnel do tempo, só que sem ordem cronológica. Um caleidoscópio que embaralha referências, gêneros e afetos.
A sinopse pode até soar simples: John D, um espião aposentado de 70 anos, vive num hotel de luxo na Riviera Francesa, bebendo martinis e ruminando o passado com o olhar de quem já viveu demais. Tudo muda quando ele conhece uma vizinha misteriosa, uma mulher magnética que carrega um piercing de diamante no seio. O reflexo dessa joia ao sol acende algo nele, como uma fagulha que ilumina antigas lembranças. A partir daí, John é puxado de volta aos dias ensolarados e perigosos da Riviera dos anos 60, quando o mundo girava entre códigos secretos, mulheres fatais, perseguições de carro e muito couro. Mas essa é só a camada visível. O filme não se fixa no mistério em si, mas na forma como ele ecoa na memória. O desaparecimento da vizinha é apenas o gatilho para o verdadeiro enigma: o próprio John.
O personagem de John D (vivido com elegância e exaustão calculada por Fabio Testi, e na juventude por Yannick Renier) é um anti-herói melancólico. Um homem que não sabe mais se o que viveu foi real ou pura invenção estética. Ao seu redor orbitam figuras quase míticas como uma sequência de agentes, traidores, amores antigos, todos embalados por aquele glamour decadente que só a espionagem vintage sabe oferecer. Uma dessas personagens brilha, Serpentik (Thi Mai Nguyen), uma espécie de vilã vestida com um macacão de couro, que usa um anel venenoso para picar seus adversários, uma assassina elegante, letal e cheia de truques escondidos no corpo. Com sua destreza física e presença hipnótica, ela parece saída diretamente de uma HQ pulp, com o charme fatal das grandes antagonistas do cinema de gênero.
Forzani e Cattet não contam histórias com começo, meio e fim. Cada cena parece surgir de um impulso visual, eles tratam o cinema como arte plástica em movimento, e não à toa O Brilho do Diamante Secreto parece ter sido montado com estilhaços de espelhos coloridos. A fotografia de Manuel Dacosse, parceiro habitual da dupla, é fundamental, ele transforma o filme num jogo de luz e sombra, de reflexos e opacidades, como se estivéssemos presos dentro de um diamante real, cheio de facetas e perigoso. A luz nunca revela tudo. A câmera se aproxima como um espião, foca em um detalhe, em um zíper sendo aberto, em um olho arregalado, em uma gota de suor escorrendo pelo colarinho, quase como se quisesse decifrar uma senha invisível.
O filme é também uma colagem de gêneros. O thriller de espionagem à la 007 está ali, claro, mas filtrado por lentes ácidas e nostálgicas. Há cenas que remetem diretamente aos quadrinhos Diabolik, com closes excessivos, ângulos oblíquos, sons ampliados ao limite e cores saturadas até a vertigem. Mas aqui, o personagem ladrão, assassino e enigmático dos quadrinhos italiano ganha uma espécie de reinterpretação feminista: o traje de couro, o veneno escondido, a aura de mistério e controle do desejo, tudo isso é encarnado por mulheres, como a hipnótica Serpentik, que assume esse arquétipo com muito mais fisicalidade, invenção e potência. Como se o filme dissesse: e se Diabolik sempre tivesse sido ela? Mas, há também algo de noir, algo de melodrama, algo de puro delírio. E tudo isso misturado sem pedir licença. Na minha sessão, duas pessoas se levantaram e foram embora antes da metade. Ouvi dizer que o mesmo aconteceu em Berlim, na estreia. Não é um filme que se molda ao gosto médio, ele exige entrega, disponibilidade, talvez até um certo prazer em se perder. Não gosto de dizer que um tipo de cinema é “para poucos”, mas há obras que não oferecem trilha de volta. Ou você entra, se deixa levar, ou prefere sair antes do labirinto se fechar.
O uso do som continua sendo uma das assinaturas mais deliciosas da dupla. Estalos, respirações, barulhos de couro, zíperes, o clique de uma arma, o som de um beijo, de uma briga tudo elevado ao máximo, como se cada elemento da cena merecesse um microfone só para si. Não há espaço para silêncio. O som também é um personagem, e como tal, ajuda a construir o suspense, a sensualidade e a confusão.
Como em outros trabalhos do casal, a narrativa é fragmentada, cheia de ecos, cortes abruptos e repetições, numa montagem que por vezes evoca o cinema de Lucio Fulci, especialmente em seus gialli mais atmosféricos, onde o corte é usado como impacto sensorial, não como costura lógica. Há algo desse delírio visual, desse fascínio pelo gesto e pelo fragmento, que atravessa o filme inteiro. Mas ao contrário de um exercício hermético, o filme consegue ser sensível e provocador. Existe ali uma ternura escondida, especialmente no olhar de John D, um homem que não sabe se ainda está jogando o jogo da espionagem ou apenas preso no labirinto da própria memória. O desaparecimento da vizinha funciona como um portal para o que era desejo virar luto, aquilo que era fantasia virar realidade ou vice-versa.
Para quem se deixar ser levado por O Brilho do Diamante Secreto a recompensa é grande. É cinema em estado bruto, sensual, alucinado, que brinca com os códigos do passado sem jamais se prender a eles. A Riviera de Forzani e Cattet não é real: é uma lembrança estilizada, uma fantasia cinematográfica onde o tempo/espaço não importam. Para quem já acompanha o trabalho da dupla, o filme é uma extensão natural do seu universo, mais narrativo que A Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo (2013), mas ainda impregnado do mesmo fetiche pela imagem e pelo som. Para quem está chegando agora, é um convite sedutor a um cinema que prefere sugerir ao invés de explicar, que entende o corpo como parte do arranjo cênico e o desejo como motor narrativo.
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