Quando eu estava na universidade de artes, tinha um professor que, uma vez por mês, promovia o “dia do nada”. Era exatamente isso, a gente saía da sala de aula, escolhia um canto qualquer do campus e simplesmente... não fazia nada. Era quase um ritual de desaceleração, uma pausa para lembrar que o ócio também faz parte do processo criativo. Era um curso que dependia muito da imaginação, mas também de repetições, de rotina e, esse respiro, sem tarefa ou cobrança, fazia sentido. Enquanto assistia Nada, do Adriano Guimarães, lembrei muito desses dias. No vazio que, na verdade, está cheio de coisa. Afinal, como não se pensa em nada? Como se esquece de nada?
O filme acompanha Ana (Bel Kowarick), uma artista plástica que volta à fazenda da família para reencontrar a irmã, Tereza (Denise Stutz), que está lidando com uma doença ainda mal compreendida. Mas o que parece um enredo simples logo se dissolve. A narrativa abre espaço para desvios, interrupções e ecos. Em vários momentos, o fluxo da história dá lugar a depoimentos com pessoas falando de suas lembranças, suas pequenas histórias, como se a memória alheia pudesse atravessar a tela e se costurar à trama principal. Isso acrescenta ao filme um tecido muito próprio, feito de retalhos íntimos e sensações compartilhadas.
E esse cotidiano que parece fluir lentamente, entre uma caminhada no campo e uma refeição silenciosa, também é atravessado por ruídos, sons estranhos, ecos de uma tecnologia que não se mostra por completo, como se o tempo presente estivesse sendo constantemente invadido por algo que não conseguimos nomear. Como se o passado deixasse fantasmas elétricos vagando pelos cômodos da casa. Essa mistura sutil entre o real e o espectral dá ao filme um tom de fantasmagoria da memória: nada é exatamente sólido, tudo pode desmanchar a qualquer momento
Em certo ponto, me peguei pensando também em Tudo que é sólido desmancha no ar, do Marshall Berman. A forma como o filme lida com a instabilidade das coisas, sejam afetos, espaços, identidades parece caminhar junto com a experiência moderna descrita por ele, onde tudo está em transformação contínua e, ao mesmo tempo, em colapso. A casa da infância já não é abrigo, a irmã não é mais a mesma, os sons vêm de um tempo deslocado. O filme, assim como Berman descreve, retrata esse mundo em que o passado não sustenta o presente, e o futuro não oferece garantias. Tudo flutua, escapa, se desfaz e, mesmo assim, a gente continua tentando se agarrar a alguma coisa. Nem que seja ao próprio vazio.
Uma obra minimamente intrigante que tá pouco interessada em agradar ou prender atenção com soluções fáceis, a não ser pelo fio de suspense que tenta evocar. Ele observa, se demora, cria camadas em silêncio. Tudo parece existir num tempo diferente, mais próximo da lembrança do que do agora. E não é à toa que o diretor Adriano Guimarães venha do teatro, onde o gesto e o ritmo valem tanto quanto a fala. Aqui, a origem teatral se mistura com o cinema de um jeito sensível, quase coreografado.
As ideias do filme nasceram a partir de escritos de Manoel de Barros, e isso também está no ar. O olhar para o mínimo, a poesia das coisas aparentemente inúteis, o espanto diante do comum. É como se o filme fizesse o mesmo que os versos do poeta: escutasse o mato, a poeira, o que mora no intervalo entre duas palavras, as pequenas coisas.
A arte da Ana, que poderia ser o centro da trama, acaba se diluindo em tudo isso. Em vez de estar no ateliê, está no gesto de cuidar, na lembrança de uma infância compartilhada, na tentativa de permanecer em um lugar que já não é o mesmo. E nesse sentido, o filme se transforma numa espécie de instalação viva, onde o tempo corre diferente, onde as memórias se misturam com os fantasmas, e onde o nada é cheio de outros nadas.
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