Prédio Vazio (2025)

Bem-vindo ao prédio onde tudo apodrece em silêncio.

Nos olhos de Gilda Nomacce mora o terror brasileiro. Desde aquele com sustos mais comuns, passando pelo que se arrasta silencioso pelas paredes da alma, e culminando com aquele que espreita entre as frestas da rotina esperando a hora certa para se fazer presença. Gilda tem esse poder: não apenas atua, mas assombra. Seja como mãe perturbada, vidente exausta ou figura ambígua entre o real e o sobrenatural, sua presença se tornou não só recorrente, mas vital para o horror feito no Brasil. Ela não interpreta o medo, ela o entende e não faz força para isso. Sua figura carrega uma espécie de dor ancestral, e isso, somado à força de suas personagens, a colocou como um dos pilares do nosso cinema de gênero contemporâneo. Em Prédio Vazio, novo filme de Rodrigo Aragão, ela não apenas retorna, mas ressurge como centro gravitacional de uma obra que também marca uma virada importante na carreira do diretor capixaba.

Conhecido por filmes como Mangue Negro (2008), A Noite do Chupacabras (2011), Mar Negro (2013) e A Mata Negra (2018), Aragão sempre esteve profundamente ligado ao imaginário rural brasileiro, cenários de lama, raízes, folclores e horrores nascidos da terra. Sempre preocupado e atento às urgências sociais e ambientais de Guarapari, sua cidade natal. Aqui, ele abandona esse chão conhecido e sobe, literalmente, para o concreto da cidade, mirando em um terror urbano que reverbera entre corredores claustrofóbicos de cores vibrantes, silêncios gotejantes interrompidos por gritos e fantasmas que espreitam esperando a hora certa para agir. O resultado é uma obra mais contida, mas também mais refinada, que revela não apenas um amadurecimento estético, mas também narrativo. E tudo isso enfrentando o fantasma real das restrições orçamentárias. O filme exibe suas limitações de forma honesta, até corajosa: os ambientes são poucos, os efeitos são discretos, a câmera na mão é eficiente e, há uma inteligência formal que transforma cada ruído de tubulação, cada luz piscante e cada parede mofada em parte de uma linguagem visual coesa e expressiva. É um horror de dentro pra fora, feito com mais silêncio do que sangue, mais clima do que choque.

A história se arma aos poucos e talvez esse seja também um de seus tropeços iniciais, para mim. O filme leva um tempo para encontrar seu tom, sua cadência. Há uma sensação de desencaixe nos primeiros momentos, como se as peças ainda não soubessem exatamente onde deveriam estar. A montagem parece hesitante, saltando de situações com certa frieza, sem nos deixar entrar de fato no espaço ou na psique dos personagens. É quando Luna (Lorena Correa), a filha, e Fábio (Caio Macedo), seu namorado rabequeiro, decidem ir até o prédio em busca da mãe (Rejane Arruda) desaparecida, que foi brincar o carnaval com o companheiro violento (Leonardo Magalhães) e, some. É a partir dessa chegada que o filme se alinha e a narrativa encontra seu fôlego com o prédio, esse organismo doente e esquecido, se revela como cenário e sintoma de uma dor que se alastra. Com o fim do carnaval, Guarapari volta a sua rotina tranquila e calma, o edifício de nome Magdalena, o mais feio daquela orla, é guardado por Dora (Gilda Nomacce), uma porteira misteriosa, cuidadosa, de voz mansa que contrasta com a arquitetura decadente daquele lugar.

Aragão deixa de lado o excesso gore que marcou seus primeiros trabalhos para investir em atmosferas carregadas, composições cromáticas elaboradas e um flerte direto com o giallo italiano, especialmente com o universo de Dario Argento. As cores saturadas, os jogos de sombra e luz, o uso expressivo da trilha sonora e uma câmera que muitas vezes parece espiar, como um voyeur amaldiçoado, remetem imediatamente a obras como Suspiria e Inferno. Mas Aragão não se limita a emular: ele absorve e devolve esse giallo tingido de concreto, feito de um abandono que é estético, sim, mas também social.

Outro aspecto que marca essa nova fase do diretor é a centralidade das mulheres. Diferente de seus filmes anteriores, onde os protagonistas eram frequentemente homens enfrentando o inexplicável, Prédio Vazio se constrói a partir de presenças femininas densas, múltiplas e marcadas por silêncios eloquentes. Gilda Nomacce lidera esse elenco com sua habitual força, mas é acompanhada por outras atrizes que ajudam a construir uma narrativa feita de pressentimentos, traumas e memórias que se recusam a morrer. Essas personagens não são vítimas, mas sobreviventes e o filme nunca as reduz a função de susto ou enigma. Elas são o próprio enigma.

Rodrigo Aragão, ao subir para o asfalto e abandonar por um momento o mangue, parece também subir degraus em sua própria trajetória. Há mais controle, mais atenção ao detalhe, mais confiança no impacto da sugestão, mesmo que em alguns momentos uma coisa aqui outra ali nos lembre do baixo orçamento do filme. Mesmo assim, é uma obra que trabalha muito o incômodo persistente, aquele que continua após os créditos. É um trabalho que respira com mais calma, que permite que os espaços digam tanto quanto os diálogos. Um filme que prova que o medo, quando bem construído, não depende de efeitos caros ou pirotecnias visuais, mas de escuta, paciência e precisão. A questão da visão periférica, novo medo desbloqueado! Quem viu vai me entender!

Nos últimos anos, temos visto um florescimento cada vez mais sólido do cinema de gênero feito por aqui. Diretores como Juliana Rojas, Marco Dutra, Gabriela Amaral Almeida, Dennison Ramalho, Guto Parente, Ramon Porto Mota, Anita Rocha da Silveira, Matheus Marchetti, Daniel Bandeira e o próprio Aragão têm demonstrado que há um caldo riquíssimo de formas, estilos e discursos possíveis dentro do nosso gênero. Prédio Vazio é mais uma prova de que o horror brasileiro não apenas resiste, ele se reinventa. E, como Gilda Nomacce nos mostra com cada novo papel, ele o faz com alma, coragem e, acima de tudo, presença. Em constante transformação, a nossa ficção fantástica não se acomoda, ele se expande.

O filme que já teve algumas pré-estreias e passagens por festivais, inclusive sendo premiado no Festival de Tiradentes, estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 12 de junho, com distribuição da Retrato Filmes. Date imperdível!


Se curte meu trabalho, que tal me pagar um cafezinho? Além de aquecer o coração, ajuda a manter a criatividade cafeinada e eu fico agradecida até a última gota! 



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