Há algo em comum entre festas populares, memórias familiares e corpos deslocados: todos carregam dentro de si um ruído do que já passou, mas ainda ressoa. Escrevo hoje esse texto falando sobre o segundo e o terceiro dia do Cine PE, dois dias que me parecem querer percorrer esse campo sensível onde o passado, o presente e o simbólico se encontram. É como se cada filme fosse um pequeno altar, ora colorido, ora melancólico onde reverenciamos o que não cabe nas palavras, mas vive na dança, no corpo, no afeto e na ausência.
Começo com Babalu é Carne Forte (PE), onde Xulia Doxagui nos devolve à infância, não como nostalgia, mas como terreno assombrado, não no sentido do medo, mas do mistério. Diana retorna à sua comunidade durante a festa de São Cosme e Damião, e é uma criança quem a conduz. E é sempre assim: os guias do invisível raramente são os mais velhos. A infância aparece aqui como fissura temporal, meio de acesso a um passado talvez não resolvido. É um convite à brincadeira, sim, mas também à memória e à dor que ela pode carregar.
Essa tensão entre festa e saudade se estende por O Carnaval é de Pelé (PE), de Lucas Santos e Daniele Leite, onde o riso, a fantasia e o brilho das alegorias se misturam ao tecido da memória. Pelé, o enfermeiro e brincante, costura não só o boi, mas também a própria história que se entrelaça com a do pai e a do grupo centenário. O filme fala do fazer manual, mas também do gesto de lembrar como ato político, como resistência à erosão do tempo. Pelé já não pode ser o brincante que foi de outrora, no entanto, isso não o impede de estar presente naquele grupo, naquela brincadeira.
Tal memória coletiva, marcada pela ausência da festa, ganha outra tonalidade com o longa pernambucano O ano em que o frevo não foi pra rua. Mariana Soares e Bruno Mazzoco filmam um luto coletivo, mas de forma íntima, sensível, quase como se escutássemos a cidade chorar baixinho. É sobre a dor de não poder celebrar e, no Recife e em Olinda, não sair no Carnaval é quase um rasgo na alma. A folia interrompida por dois anos devido a pandemia da covid-19, vira símbolo de tudo que o isolamento arrancou, e o frevo ausente se torna grito abafado de uma saudade que não é só da festa, mas da própria vida. Então, enfim, chega 2023 e o folião pode gritar, brincar e frevar tudo o que ficou calado por dois anos. Filmes sobre frevo, carnaval tocam fundo a plateia do Cine PE, foi assim o ano passado com o premiadíssimo Hoje Só Volto Amanhã e se repetiu esse ano.
No meio dessa costura entre memória e festa, Kabuki (SP), curta de Tiago Minamisawa, propõe uma outra travessia do corpo. Em animação, o filme fala de deslocamentos mais íntimos e metafísicos. Um corpo masculino que não se reconhece como tal, uma identidade que se descola da matéria e busca outras formas de existir. É quase como se dissesse: não é só o passado que nos escapa, o próprio corpo pode ser um território de exílio. A alma que desperta e transcende em Kabuki conversa com a criança de Babalu, com o idoso de Pelé, com os foliões órfãos de frevo. Todos buscando algum reencontro, algum retorno, mesmo que improvável.
Avançando para o dia 11 e terceiro dia de festival, a chave muda, mas o tema da herança, do que se transmite (ou não), segue firme. Em Sonho em Ruínas, curta pernambucano de Priscila Nascimento, fala de ancestralidade como revelação. O sonho é o disparador, e por meio dele conhecemos uma bisavó negra ainda silenciada. Se no dia anterior eram as festas que convocavam o passado, aqui é o sonho quem abre a cortina do tempo, como um portal sensível onde o que foi negado insiste em surgir. Um curta muito bem alinhado entre forma, técnica e conteúdo.
Se no anterior tínhamos o mar como cenário, o curta alagoano Tapando Buracos, de Pally e Laura Fragoso, parte de outro lugar: o sertão com o sangue que escorre, literal e simbólico. Rosa e Janaína vivem tapando buracos de uma estrada, mas também de uma estrutura que as esqueceu. A menstruação, tema central, é tratada como um ponto de ruptura, o que deveria ser natural, é tabu. O filme toca num ponto raramente explorado com tanta frontalidade no cinema brasileiro: a pobreza menstrual. É um corpo que sangra diante do descaso, e que insiste em viver como um grito abafado entre pedras, poeira e o sonho de um dia poder voar pra longe dali. Muitos aplausos e já é um dos meus favoritos do festival.
Em seguida, O Último Varredor, de Perseu Azul e Paulo Alipio, desloca o foco para o interior do Mato Grosso, numa crítica potente ao agronegócio. A metáfora é dolorosa: o varredor que sobrou, o elo perdido de uma corrente que virou máquina de produção. O filme, mesmo curto, nos obriga a pensar quem são os que restam quando o progresso passa como um trator. Quem limpa o rastro do desenvolvimento? Quem some da história?
E por fim, Senhoritas, longa pernambucano de Mykaela Plotkin, fecha o dia com delicadeza e coragem. Aqui acompanhamos Lívia (Analu Prestes) uma arquiteta aposentada, que vê sua vida confortável e estruturada ser desafiada por Luci (Tânia Alves), uma amiga que retorna após longos anos morando em Buenos Aires. O reencontro entre elas é também um reencontro com desejos esquecidos e uma vida de possibilidades. O filme trata de afetos tardios, de uma sexualidade que insiste mesmo quando a sociedade já decidiu que ela devia estar adormecida. É um filme sobre abrir janelas depois de uma vida inteira com as cortinas fechadas. Um filme sobre se permitir e, isso talvez seja o gesto e a proposta mais radical de todos. Muitas palmas para a entrega das atrizes e para Genézio de Barros, que faz o marido de Lívia.
Juntos, os filmes de 10 e 11 de junho criam um território híbrido entre festa, silêncio, ancestralidade, corpo e memória. Gestos que dizem estamos vivos, estamos dançando, mesmo que seja só por dentro. Estamos sonhando, mesmo que estejamos em ruínas
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