Cine PE dia 1 e A Melhor Mãe do Mundo (2025)

FOTO: ACERVO PESSOAL

A noite de abertura da 29ª edição do Cine PE, tradicional festival de cinema de Pernambuco, foi marcada por uma combinação de entusiasmo, atrasos e discursos. Em um clima de reencontro entre cineastas, público e representantes do setor audiovisual, a cerimônia contou com a presença da ministra da Cultura, Margareth Menezes, que lançou oficialmente o Arranjos Regionais, edital com R$300 milhões para movimentar e impulsionar a produção audiovisual em todas as regiões do país, mas com algumas especificidades, como o compromisso de reafirmar o fortalecimento do cinema nacional e a valorização da diversidade de narrativas.

Antes da principal sessão da noite, o público foi presenteado com a exibição de três curtas pernambucanos: na mostra hors concours, Eu Preciso Dizer que te Amo, documentário realizado por Marlom Meirelles e estudantes da rede pública de Jaboatão dos Guararapes; Esconde-Esconde, uma ficção de Vitória Vasconcelos que está dentro da competitiva de curtas daqui do estado; e, Cavalo Marinho, de Léo Tabosa, ficção que concorre na competitiva nacional. Outro da nacional foi o curta potiguar Liberdade sem Conduta, de Dênia Cruz, reafirmando o espaço fundamental que o festival reserva para produções nordestinas de curta duração.

E, até que enfim, chegou a hora da grande atração da noite, a estreia nacional do longa-metragem A Melhor Mãe do Mundo, novo trabalho de Anna Muylaert. O filme chegou à tela cercado de expectativa e como aposta do festival para abrir discussões sociais relevantes logo no primeiro dia, pois se apresenta como um drama social sensível que, através da jornada de Gal (Shirley Cruz), dá visibilidade às invisíveis catadoras de recicláveis pretas mães chefes de família e que ainda vivem sob a sombra da violência doméstica. A princípio, o filme se desenha como um gesto de empatia e reverência à força das mulheres negras periféricas. No entanto, conforme a narrativa avança, torna-se inevitável perceber que essa reverência caminha perigosamente ao lado da fetichização da dor, da pieguice e de uma certa simplificação simbólica das figuras negras retratadas, especialmente no que diz respeito à construção do homem negro como “vilão”.

A protagonista é apresentada com cuidado estético e emocional. Gal carrega o peso do mundo nos ombros, e o filme insiste em seu sacrifício, sua resiliência, sua resistência à margem. Nesse retrato, é impossível não destacar o belíssimo trabalho de atuação e performance da atriz que a interpreta. Ela preenche cada silêncio com uma densidade rara, faz do corpo um campo de linguagem, e do olhar, uma geografia de camadas que a direção às vezes não alcança. Mesmo quando o roteiro escorrega para o simbólico, piegas ou o excessivamente dramático, a intérprete de Gal mantém os pés fincados na materialidade da vida real, e é ela quem ancora o filme no chão, impedindo que se dissolva na estética da miséria ou da redenção fácil.

Ainda assim, paira no ar uma pergunta desconfortável: até que ponto o filme homenageia essa mulher, e até que ponto se nutre de seu sofrimento como elemento dramático e visual? A câmera observa, emoldura, captura. Mas nem sempre compartilha ou permite que Gal realmente fale por si, o que nos leva ao problema central: quem está contando essa história, e para quem?

Muylaert é uma cineasta que já demonstrou interesse por questões sociais em outros trabalhos, como Que Horas Ela Volta? (2015), mas é importante reconhecer que ela fala a partir de um lugar de privilégio racial e de classe. A dor de Gal é comovente, mas sua representação parece moldada para tocar um público que está mais distante dessa realidade do que inserido nela. O olhar que tenta dar voz pode, inadvertidamente, acabar organizando essa voz para consumo, e não para transformação.

É nesse ponto que a crítica de Grada Kilomba se torna urgente. Em Memórias da Plantação (2008), ela pergunta: “O que acontece quando aqueles que foram silenciados começam a falar? Quem está autorizado a falar? E sobre o quê?” A fala, no cinema, não é apenas verbal, ela é narrativa, estética, política. E quando corpos negros são postos em cena sob a lente branca, existe sempre o risco de que se tornem apenas símbolos da dor, da força, da resistência, em vez de sujeitos de uma experiência complexa.

O homem negro, nesse contexto, é representado quase exclusivamente como ameaça. Seu papel na trama é ser o motor do sofrimento da protagonista. Ele é violento, instável, perigoso e, pouco mais que isso. Falta-lhe história, motivação, contexto. O resultado é a reprodução de um binarismo racial e de gênero antigo e ainda persistente: a mulher preta como mártir silenciosa; o homem preto como agente da destruição. Esse tipo de representação, mesmo quando envolto em intenções humanistas, reforça estereótipos e empobrece a imaginação coletiva.

A Melhor Mãe do Mundo é um filme que, apesar de tudo, ainda se mostra sensível, mesmo que em determinados momentos sua sensibilidade pareça moldada por fora, pela estrutura, e não por dentro, pela escuta. É urgente que o cinema brasileiro vá além da representação simbólica da negritude e avance rumo à partilha real de autoria, de poder e de linguagem. Porque representar não é apenas mostrar, é escolher quem fala, como fala e com que finalidade. E, como nos lembra bell hooks, esse gesto sempre carrega uma ideologia. O filme tem sua estreia nos cinemas no dia 07 de agosto, vá, assista e esteja atento ao que é dito. Mais do que um convite ao olhar, é um chamado à escuta ativa e crítica.





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