Assombros, distopias e rupturas no 4° dia de Cine PE

 A sessão de ontem no Cine PE foi mais que uma vitrine de experimentos estéticos, foi, sobretudo, uma provocação. Ao reunir obras que operam no campo da ficção científica, do horror e do psicológico, a curadoria abriu espaço para uma pergunta incômoda e urgente: o que acontece quando corpos historicamente excluídos dos centros da narrativa, corpos racializados, queer, maternos, periféricos, passam a ocupar os gêneros que moldaram nosso imaginário coletivo? O resultado é um cinema que desorganiza, desloca e oferece novas coordenadas de pertencimento e imaginação.

Entre os curtas, dois filmes da competitiva Pernambuco me tocaram especialmente: Lança-Foguete e Sertão 2138. Não apenas por suas escolhas formais, mas por como operam dentro (e contra) os códigos do cinema de gênero. O primeiro mergulha no luto queer com uma sensibilidade cortante; o segundo constrói uma distopia que nasce do sertão e explode em engenhosidade simbólica e técnica.

Lança-Foguete, dirigido por William Oliveira, nos apresenta a Levi e sua mãe, que lidam com o desaparecimento de uma jovem trans em um Recife marcado por abduções misteriosas. O luto se mistura com o inexplicável, e o filme cria uma atmosfera que é ao mesmo tempo íntima e cósmica. O uso de sintetizadores e da trilha sonora com ecos dos anos 80 intensifica esse clima entre o que é estranho e o que é familiar, como se estivéssemos, de fato, ouvindo o som de um foguete partindo de dentro da dor.

Mas o que mais impressiona no curta de Will, é a escolha de dar forma sci-fi a uma vivência que o cinema raramente ousa encarar com tanto afeto e respeito: o luto queer, vivido por uma família disfuncional, mas ainda assim profundamente conectada. O filme não exotiza o sofrimento, nem entrega um "final fácil". Ele transita entre ausência e brilho, entre trauma e reexistência. Uma das perguntas que emergiram é sobre o impacto dessa escolha estética: como filmar o luto de um corpo queer a partir do fantástico sem perder a sua materialidade política? O filme responde com imagens que iluminam o invisível.

Em Sertão 2138, de Deuilton B Júnior, a proposta é expandir o sci-fi para além do urbano e das metrópoles do futuro. Aqui, a ficção científica encontra uma casa de reboco no meio do sertão e esse contraste é a força do filme. A ambientação é, por si só, um gesto político e estético. A engenhosidade dos equipamentos, o uso inventivo da baixa tecnologia e a inteligência sensorial da encenação revelam um cinema que reflete sobre o próprio fazer. É também sobre o "como fazer ficção científica no Brasil com as ferramentas que temos". E mais: com que corpos. Uma das perguntas que pairou no ar é sobre a escolha de colocar uma mulher negra como cientista protagonista. Em um gênero onde a centralidade quase sempre foi branca e masculina, essa presença reconfigura a lógica da representação. A própria narrativa se volta para o bastidor, o sci-fi aqui é também sobre o ato de construir, imaginar, montar. Perguntado, o diretor citou a importância de pensar referências locais e chegou a mencionar o cinema de Roberto Pires, não no fetiche da homenagem, mas na linhagem do gesto criativo que parte do precário para alcançar o assombro.

Outro filme que trouxe força simbólica foi Casulo. A diretora, Aline Flores, que também atua, revelou que a ideia nasceu ainda durante a gravidez, um período atravessado por medo, notícias ruins e o terror de um mundo que não parece mais seguro. Esse medo extremo, não nomeável, foi o ponto de partida para o curta. E o filme traduz isso com uma precisão angustiante: o som abafado, os enquadramentos que encolhem, a impossibilidade de sair de si. Há algo de claustrofóbico e profundamente comovente na forma como o filme trata a solidão materna, o pós-parto como casulo onde o cuidado e a morte rondam o mesmo quarto. O audiovisual raramente se detém nesse espaço: o de uma mãe que teme o mundo e teme também o que pode vir de dentro, disse Aline na coletiva de imprensa.

A Caverna, de Louise Fiedler, por sua vez, trabalha a metáfora de forma explícita: mãe e filha dividem um espaço entre amor, excesso de cuidado e uma impossibilidade de separação. A caverna do título não é apenas um lugar físico, é o útero simbólico, a prisão psíquica, o espaço da síndrome do pânico. O filme articula temas como saúde mental, culpa e progresso individual. A filha quer sair, seguir, existir; a mãe parece paralisada. E a culpa por essa movimentação, por "abandonar" quem não pode seguir junto, é o que pulsa no filme, disse a diretora na coletiva. Uma história pessoal dela, serviu de ponto de partida e isso se sente na densidade emocional que atravessa a trama.

Itatira, o longa da noite, é um documentário de mistério que flerta com o sobrenatural e aposta no que não se mostra. Com direção de André Luís Garcia, o filme aborda o caso real de um jovem que morre durante uma brincadeira em uma escola do sertão cearense e serve de base para uma narrativa que prefere a contemplação, o som à imagem, a sugestão ao choque. Há uma construção cuidadosa das camadas sonoras, uma imersão que contrapõe o tratamento midiático sensacionalista do caso. Em vez de espetáculo, o filme oferece ritual e talvez isso seja a maior barreira para a conexão com a proposta. O céu e as estrelas aparecem como elementos mágicos, abrindo uma fresta para o inexplicável. O nome do município, Itatira ou "pedra áspera", talvez resuma a experiência do filme: uma beleza bruta, cheia de atrito. Ainda assim, a obra parece abarcar tanto: mídia, espiritualidade, símbolos, possessão, memória, cultura e isso por vezes dilui sua força. Há uma riqueza de material, mas também um excesso que por pouco não rompe o fio da imersão. É um filme que contempla o desejo de fabular o real, mas que talvez não confie tanto assim em seu próprio mistério.

Ao final da sessão, o que restou foi mais que um recorte de produções do fantástico, foi um deslocamento das estruturas. Ver corpos queer, mães solitárias, mulheres negras cientistas, sertanejos futuristas e mortos que ainda assombram ganharem espaço no cinema de gênero é perceber que esses gêneros, por tanto tempo pensados como códigos universais, podem e devem ser apropriados, reescritos, reinventados. Um cinema que sabe que o horror e a ficção científica não são apenas formas de escapar da realidade, mas também maneiras de enfrentá-la de frente, mesmo quando tudo parece estar prestes a explodir. Ou a sumir, como um foguete no céu. 




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