Mickey 17 (2025)

O que realmente nos define: nossas memórias ou nossos corpos? E se morrer deixasse de ser o fim, mas apenas um intervalo antes de sermos substituídos por uma nova versão de nós mesmos?

Bong Joon-ho retorna ao cinema com Mickey 17, um thriller de ficção científica baseado no romance de Edward Ashton. A obra mescla ação, sátira, existencialismo e uma crítica social incisiva, abordando temas como clonagem e identidade em um ambiente hostil fora da Terra. A narrativa é ainda marcada pelo extremo frio e pela exploração humana. Com um elenco estelar liderado por Robert Pattinson, e contando com grandes nomes como Naomi Ackie, Steven Yeun, Toni Collette e Mark Ruffalo, a produção chega aos cinemas gerando grande expectativa, especialmente após sua estreia no Festival Internacional de Cinema de Berlim.

A trama acompanha Mickey Barnes, um operário descartável na colônia humana de Niflheim, um planeta gelado e inóspito. Como parte de seu contrato, ele aceita realizar tarefas extremamente perigosas, sendo regenerado em um novo corpo cada vez que morre. Esse ciclo de morte e renascimento parece funcionar sem grandes problemas até que Mickey 17, erroneamente dado como morto, retorna à colônia e descobre que já foi substituído por Mickey 18. Em um sistema onde apenas uma versão de um descartável pode existir por vez, os dois se veem diante de uma ameaça iminente: se forem descobertos, ambos serão eliminados.

Bong Joon-ho continua a explorar sua assinatura de humor ácido e crítica social, apostando em personagens exagerados e situações cômicas de puro pastelão – especialmente nas repetidas e absurdas mortes do protagonista. Essa abordagem transforma o grotesco em algo simultaneamente hilário e perturbador, um tom que já marcou alguns de seus melhores trabalhos. O conceito de um trabalhador descartável ecoa preocupações contemporâneas sobre a automação e a precarização do trabalho, remetendo a filmes como No Limite do Amanhã (2014), com sua repetição de mortes para mudar um destino inevitável, e Feitiço do Tempo (1993), que explora o aprisionamento em um ciclo sem fim. Aqui, porém, a repetição não traz aprendizado ou redenção, apenas reforça a obsolescência do protagonista.

A sátira tem um papel crucial em narrativas como essa: ao exagerar elementos da realidade, permite uma reflexão mais profunda sobre problemas sociais e políticos e Bong se utiliza de um humor bem característico para evidenciar a frieza de um sistema que trata vidas humanas como bens consumíveis, uma crítica que dialoga com RoboCop (1987) e Brazil - O Filme (1985), ambos conhecidos por sua visão distópica do corporativismo.

Curiosamente, Mickey 17 também encontra um paralelo inesperado em O Macaco. (2025), filme que vi na mesma semana em cabine. Enquanto o trabalho de Perkins reforça a inevitabilidade da morte como um evento inescapável, Bong subverte essa lógica ao transformar a morte em um mecanismo de repetição e renovação. No entanto, essa aparente imortalidade do protagonista não significa libertação, mas sim um ciclo de destruição e reconstrução que o mantém preso à sua condição descartável. No entanto, o romance entre Mickey e Nasha (Naomi Ackie), adiciona uma camada profundamente irônica à posição do protagonista. Como um "descartável", Mickey existe para ser substituído a cada morte com sua consciência sendo transferida para um novo corpo, mantendo a continuidade de sua identidade, mas sem o direito de uma existência singular. Isso acaba sendo um desafio dessa lógica impessoal do ciclo de destruição e renovação.  

Se amar é, em parte, um desejo de continuidade, de compartilhar o tempo e construir algo duradouro, o que significa amar alguém cujo destino é ser substituído indefinidamente? Nasha se apaixona por Mickey sabendo que ele nunca será exatamente o mesmo – sua essência pode persistir, mas a experiência do corpo, a memória emocional e até a noção de si mesmo se fragmentam a cada recriação. Isso transforma o romance em um ato de resistência: para Mickey, estar com Nasha é afirmar sua individualidade em um sistema que o trata como um recurso reaproveitável. Para ela, é lidar com a dor de um amor condenado a recomeçar, sem garantias de continuidade genuína. Ou, até aparecer mais um Mickey.

Bong Joon-ho, mestre em explorar as contradições humanas, usa esse relacionamento para aprofundar a tragédia do protagonista. Se a imortalidade de Mickey não é libertação, mas um ciclo sufocante, o amor também se torna um dilema: um respiro de humanidade ou apenas mais um laço a ser cortado e refeito?

Robert Pattinson entrega uma performance cativante, dando nuances distintas a Mickey 17 e Mickey 18, tornando cada versão do personagem única, apesar de compartilharem as mesmas memórias. O restante do elenco fortalece a dinâmica da trama, com Steven Yeun, Toni Collette e Mark Ruffalo contribuindo para o tom irônico do filme. Yeun interpreta Timo, amigo de Mickey na Terra e um dos membros da missão que lida com as duplicações de Mickey, enquanto Collette dá vida a Ylfa, uma mulher manipuladora e calculista com interesses ocultos na colonização.

Ruffalo assume o papel de Kenneth Marshall, o autoritário comandante da expedição, um líder temperamental e elitista cuja postura tirânica adiciona tanto tensão quanto comicidade à narrativa. Explorando o desespero de um povo empobrecido para se manter no topo, ele encarna a figura do político mesquinho e egocêntrico, que governa com base em manipulação e teatralidade vazia, um tipo cada vez mais frequente na nossa real política mundial. Sua atuação carrega um exagero intencional, refletindo o tom satírico do filme e reforçando sua crítica aos sistemas de poder.

Essa abordagem acaba por lembrar, de certa forma, o humor de O Expresso do Amanhã (2013), também dirigido por Bong, e de Não Olhe Para Cima (2021), onde o absurdo de uma situação extrema é tratado com um misto de crítica e comédia. Embora Mickey 17 talvez não alcance a mesma concisão de Parasita (2019) ou de sua fase coreana, ainda assim é uma experiência alucinante, repleta de energia e excentricidade que dá muito pano para debates pós filme.

Visualmente, Mickey 17 impressiona. A cinematografia de Darius Khondji, que já trabalhou com Bong em Okja (2017), captura a imensidão fria e desoladora de Niflheim, contrastando com os espaços apertados e opressores da colônia. A trilha sonora de Jung Jae-il, reforça a sensação de tensão e isolamento, contribuindo para a atmosfera angustiante do filme.

Além da luta interna de Mickey para afirmar sua própria existência, Mickey 17 também aborda um conflito maior: a relação entre os colonizadores humanos e os habitantes nativos de Niflheim. Inicialmente relegados ao status de lenda ou ameaça distante, os Creepers, assim batizados pela tripulação invasora, permanecem escondidos, observando silenciosamente pelas sombras a ocupação de seu planeta. No entanto, à medida que a colônia se expande e os interesses de seus líderes se tornam mais agressivos, o embate se torna inevitável.

Kenneth Marshall encarna a visão clássica do invasor: autoritário, pragmático e cego à legitimidade dos povos que já habitam aquele território. Para ele, a sobrevivência da colônia justifica qualquer meio, incluindo a aniquilação dos originários. Essa abordagem não apenas ecoa a história de invasões e genocídios no nosso próprio mundo, mas também reforça a ironia da situação: os humanos, que fugiram de um planeta esgotado por sua própria exploração desenfreada, repetem os mesmos erros em sua nova morada.

No centro da história, a questão da identidade se torna inevitável: se memórias e consciências podem ser transferidas para novos corpos, o que realmente define quem somos? Essa reflexão, já abordada em clássicos como Blade Runner (1982), ganha aqui uma nova perspectiva, trazendo o debate para um contexto em que não apenas a identidade, mas a própria existência, é tratada como um recurso descartável. Essa ideia ressoa também em Soylent Green (1973), onde a vida humana é reduzida a um mero produto dentro de um sistema impiedoso. Em ambos os casos, a individualidade é colocada em xeque, seja pela substituição de corpos e consciências ou pela exploração extrema da própria existência.

No fim das contas, Bong Joon-ho consegue, mais uma vez, entregar uma obra visualmente marcante, repleta de humor, temas profundos e uma identidade cinematográfica inconfundível. Seu talento para equilibrar o absurdo com a crítica social se destaca novamente, garantindo que, mesmo para aqueles que não se entregarem totalmente à loucura do filme, mesmo assim ele seja uma experiência única e memorável.




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