O mainstream, muitas vezes, é guiado por fórmulas narrativas e estéticas que já foram testadas e aprovadas pelo grande público. São filmes que geralmente seguem padrões familiares de ritmo, enredo e resolução, o que acaba criando uma zona de conforto emocional para os espectadores. Quando assistimos a algo que foge desses padrões, como em filmes experimentais, independentes ou fora de Hollywood, podemos nos sentir desconcertados ou frustrados, já que eles podem romper com o previsível desafiando, assim, nossas expectativas e pedindo um envolvimento emocional mais complexo. Isso pode provocar resistência, pois muitas vezes estamos mais inclinados a buscar entretenimento que nos ofereça um sentido de familiaridade, segurança ou satisfação instantânea. Quando uma obra se afasta dessa fórmula, ela pode causar estranhamento ou desconforto, e essa é uma das melhores facetas do horror: nos tirar da zona de conforto nos oferecendo experiências ricas e transformadoras. Essa angústia é, muitas vezes, um dos maiores trunfos do gênero, pois nos força a confrontar medos profundos e desconcertantes, proporcionando algo que vai além do susto imediato. Nem todo mundo está preparado para lidar com isso, e está tudo bem.
Não Fale o Mal, filme dinamarquês de 2022, exemplifica perfeitamente esse tipo de abordagem ao nos tirar da zona de conforto com sua narrativa lenta e crescente, que culmina em uma sensação sufocante de pavor. O filme de Christian Tafdrup lida com a ideia de manipulação social e o mal-estar da hospitalidade em excesso, que inicialmente parece inofensiva, mas se transforma em algo profundamente perturbador. Ele se desvia das fórmulas clássicas de horror, evitando sustos fáceis ou efeitos visuais impactantes e, em vez disso, cria uma tensão psicológica que se baseia no horror crescente a partir da impotência dos personagens. A inquietação do espectador vem não só das situações grotescas apresentadas no filme, mas também da violação das normas sociais que os personagens hesitam em quebrar, mesmo quando elas os ofendem ou seus instintos os alertam para o perigo.
O afastamento da fórmula tradicional de ação e resolução rápida pode, para alguns, causar frustração, já que o filme opta por explorar o mal em seu aspecto mais sutil e lento, proporcionando ao público a ausência de alívio e nos colocando em um lugar desconfortável, mas genuinamente aterrorizante ao nos fazer questionar não só as ações dos personagens, mas também nossas próprias reações diante do medo, da ameaça e da penalização final totalmente desconcertante, para dizer o mínimo.
Sem entrar no mérito de ser desnecessário ou não, Não Fale o Mal, o remake estadunidense que chega descaradamente dois anos após o original, produzido pela Blumhouse e dirigido por James Watkins, não é tão inquietante assim e ainda nos chama de idiotas com seu excesso de explicação, um tom formal para caber em Hollywood e uma resolução que beira ao moralismo ao apelar para a cura emocional e reconstrução de laços de uma família quebrada. Entretanto, essa é uma fórmula que funciona e, por isso, o filme de Watkins agrada a alguns, principalmente àqueles que não assistiram ainda ou os que se viram insatisfeitos com o original.
Com um início aparentemente inocente, onde Paddy (James McAvoy), um escocês sorridente, pede ao complacente americano Ben (Scoot McNairy) para pegar uma de suas cadeiras de piscina que estava sendo usada pela filha de Ben, Agnes (Alix West Lefler), mas que não a usava no momento e havia deixado uma toalha em cima enquanto estava dentro da água. Embora tivesse claro que o objeto estava em uso, o sorriso amigável e o charme insinuante de Paddy (quem recusaria algo a McAvoy?) fazem com que Ben ignore o embaraço e ceda ao pedido. Essa abertura maliciosamente indiferente prepara o terreno para o que está por vir: uma lenta ebulição de tensão em uma série de acontecimentos desconcertantes.
Ben Dalton, sua esposa Louise (Mackenzie Davis), que estão em crise no casamento, e sua filha Agnes formam uma família americana comum que, durante as férias, faz amizade com Paddy, sua esposa Ciara (Aisling Franciosi) e o filho Ant (Dan Hough). Após retornarem a Londres, os Daltons recebem um convite para passar o fim de semana na propriedade rural idílica de Paddy e Ciara, só que o que começa como um feriado de sonho logo desmorona e, à medida que as interações desconfortáveis se intensificam, o espectador se vê preso em uma atmosfera sufocante, onde o incômodo suprimido inicial, já desde a cadeira, se transforma em algo sombrio e perigoso, levando a família Dalton ao limite, só que com os clichês de Hollywood, diluindo um possível impacto a partir da questão social e comportamental proposta pela ideia do roteiro original do filme de 2022.
É a partir do convite de Paddy que o entediado Ben aproveita a chance de sair daquela rotina familiar sufocante, mesmo que encontre alguma resistência de Louise para evitar possíveis conflitos, ela acompanha sem reclamar, assim como a filha deles, que pode brincar com o filho mudo de Paddy e Ciara, Ant. No filme original, Christian Tafdrup equilibra seu tom amargo com humor ácido sutil, onde a comédia funciona por ser desconfortavelmente discreta. A trama se constrói lentamente, e o casal protagonista evita falar sobre o mal que testemunha, tornando o título tematicamente impactante. Entretanto, na versão de Watkins, grande parte dessa magia perturbadora se perde. Em vez de um humor modesto e insinuante, o remake exagera ao praticamente nos implorar e explicar que tal momento era para rir, transformando McAvoy e Franciosi em vilões mais forçados do que manipuladores astutos. Que desperdício para o enorme talento que é McAvoy. A diferença comportamental entre duas famílias de países distintos, tão focada no filme de Tafdrup e a mudança de tom entre os filmes é gritante, pois o de 2024 troca o sadismo sutil e a atmosfera doentia que definia o original para uma abordagem exagerada, caricata e menos eficaz na criação da perturbação psicológico.
Não dá para entrar no coro condenatório de que remakes não deveriam existir, pois eles podem muito bem coexistir com seus originais e até acrescentar novas camadas à narrativa. Refazer uma história pode ser uma experiência renovadora; exemplos não nos faltam. Como O Enigma de Outro Mundo, que John Carpenter trouxe em 1982, reinventando o filme de 1951 e criando uma atmosfera de paranoia com efeitos práticos inesquecíveis. Suspiria, de Luca Guadagnino, trouxe uma nova visão ao clássico de Dario Argento de 1977, focando em uma estética mais sombria, desbotada e realista, explorando profundamente temas políticos, psicológicos e históricos, como o trauma e a repressão. Outro bom exemplo é Invasores de Corpos de 1978, que atualiza o contexto original ao refletir novos medos ressoando com o público. São filmes que, ao agregar uma visão criativa além da ideia original, podem enriquecer a experiência de quem vai assistir.
Então, se você não viu o original, não vou estragar contando o final, mas digo que ele é capaz de arruinar o dia de qualquer um. Se viu e não gostou, te digo que Não Fale o Mal (2024), para você, pode ter seus méritos, já que se propõe a parecer uma correção aos supostos erros do dinamarquês e adota um final mais gratificante, enfraquecendo o impacto e a essência perturbadora do filme de 2022. Para não ficarem achando que eu desgosto de tudo desse remake, uma coisa que me cativou deveras foram as crianças que, diferente do filme de 2022, tem uma mudança de postura positiva e mais destaque em tela. A filha do casal norte-americano, não está totalmente alheia ao que acontece e ao clima, porém, nem tudo pode ou deve ser explicado para ela. Gosto disso.
Não Fale o Mal estará disponível nos cinemas de todo o país a partir do dia 12 de setembro.
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