Em A Substância (2024), de Coralie Fargeat que estreia hoje nos cinemas, a narrativa se desenrola em torno de temas profundamente enraizados na experiência feminina, particularmente a questão do envelhecimento e da relevância em um mundo que, frequentemente, idolatra a juventude. O filme serve como uma janela crítica para discutirmos a forma como a indústria cinematográfica e a cultura pop lidam com a perda de significância, sobretudo a partir das mulheres que envelhecem e de como são descartadas como peças que perderam a validade. Como Simone de Beauvoir observou, "a beleza é uma forma de opressão” e há uma brutalidade implícita na maneira como a indústria do cinema lida com o etarismo, relegando mulheres mais velhas a papéis secundários, desvalorizando-as em favor de versões mais jovens e "comercializáveis", isso já foi discutido e representados de diversas formas e em diversas obras produzidas pela própria Hollywood. No entanto, o que diferencia o filme de Fargeat dos demais, é como ela se utiliza do grotesco, do abjeto e do horror corporal para contar a história de Elisabeth Sparkles, vivida de forma soberba e visceral por Demi Moore e pela sua versão mais jovem, Sue, interpretada por Margaret Qualley.
Ele nos dá uma boa introdução sobre o que estamos prestes a presenciar a partir de elementos que simbolizam a divisão ou multiplicação celular, o reconhecimento do sucesso a partir da estrela com a calçada da fama, a obsolescência e o quase total esquecimento à medida que o tempo avança. Corta para a cena em que aparece Demi Moore em seu programa matinal de ginástica, o qual comanda já há décadas. É a jornada dela e de seu corpo que iremos acompanhar, ela, uma celebridade envelhecida que ao ouvir escondida coisas absurdas e depreciativas sobre sua aparência, se depara com uma droga do mercado clandestino, que promete lhe dar uma versão mais jovem e melhorada de si mesma.
O tema e a discussão propostos pela diretora, não é nenhuma novidade no que tange o debate cinematográfico, filmes como O Retrato de Dorian Gray (1945), A Morte Lhe Cai Bem (1992) e Juventude Eterna (2015) já exploraram de diferentes formas a obsessão pela juventude e a recusa em aceitar o envelhecimento. No entanto, A Substância traz um frescor ao abordar essas questões sob uma ótica contemporânea e intensificada não só pelo olhar feminino de Fargeat, mas também ao se utilizar do horror corporal para explorar e ir além dos limites que o próprio corpo pode oferecer. Ao situar a trama no contexto de uma indústria do entretenimento obcecada por aparências e pela constante renovação de seus ícones, a diretora coloca em evidência a brutalidade do etarismo em Hollywood e a pressão implacável sobre mulheres para que se mantenham "relevantes” e, nesse meio, sabemos, a única forma de se manter em evidência, é sendo jovem, magra, bonita e sorridente. Isso vive sendo evidenciado pelo personagem de Dennis Quaid, Harvey, um empresário predador do canal em que Elisabeth trabalhava. É bem interessante como a câmera é trabalhada quando foca nos personagens masculinos, sempre para parecer piadas de si mesmos ou seres abjetos exagerados quando, por exemplo, é mostrado Quaid comendo camarão em um restaurante enquanto conversa com Lis sobre sua dispensa.
Para falar a verdade, tudo nesta obra é feito para ser gritante, percebido e sentido. Desde as escolhas das cores primárias, saturadas e brilhantes que vão do escritório de Harvey ao apartamento de Elisabeth, passando pelo figurino metálico dos maiôs de Sue (Margaret Qualley), até as escolhas musicais e as cenas gráficas. É impossível sair indiferente deste e, mesmo que seu discurso opere em certo vazio, suas imagens ficam gravadas em nossa retina como uma tatuagem avassaladora. Fargeat sabe trabalhar muito bem as narrativas visuais em seu cinema, o que já ficou evidente em seu filme anterior, Vingança (2017), quando também utiliza uma paleta de cores quentes que evolui com a trama e com a protagonista, refletindo sua jornada e sede de vingança. Em A Substância não é diferente, à medida que o enredo se aproxima de sua segunda hora e chega ao final, os sentimentos, a atmosfera, os simbolismos e o monstro criativo ultrapassam a barreira das palavras e do absurdo. Você se pergunta: "O que vai acontecer agora?" É então que surgem os elementos e efeitos mais grotescos do horror corporal.
A escolha de Demi Moore como protagonista é especialmente significativa: uma atriz que experimentou na própria pele as expectativas e preconceitos impostos nesta indústria. Talvez por isso esteja se sentindo super à vontade no papel e é visível isso, sua entrega física é transformada em uma performance poderosa que se mistura com comicidade, horror e tristeza, principalmente para nós mulheres, esse filme é sentido de forma diferente. Não posso deixar de mencionar, claro, Margaret e Sue, sua personagem que assume a outra forma, é igualmente poderosa, lembrando a personagem alienígena de Scarlett Johansson em Sob a Pele (2013). Ela age como uma predadora exploratória em seu novo corpo, brinca com isso, se diverte, gosta, burla as regras do produto e aí culmina na tragédia.
E, ao pensar mais a fundo sobre A Substância, percebemos como sua narrativa está também inserida em uma crítica que ressoa e dialoga com o pensamento de Silvia Federici em Calibã e a Bruxa, principalmente ao abordar a exploração dos corpos, a violência sistemática e as implicações da mercantilização. Ele funciona como uma metáfora das forças opressivas que a pensadora analisa, revelando como o capitalismo moldou e explorou os corpos, especialmente os femininos, desde a transição do feudalismo para o capitalismo. Esses corpos, no filme, são transformados em recursos a serem controlados e explorados, refletindo a crítica de Federici à opressão sistemática e à desumanização promovida pela lógica predatória patriarcal de mercado. Ao mesmo tempo, a narrativa alimenta medos e tensões sobre o controle do feminino, expondo os limites extremos a que aquele corpo pode chegar na busca por escapar do esquecimento e da irrelevância.
Além disso, o pensamento de Fargeat, acredito, se alinha muito com o mangá Helter Skelter, de Kyoko Okazaki, lançado em 2003 e adaptado para o cinema em 2012 por Mika Ninagawa. Assim como em A Substância, a história explora a obsessão pela beleza, juventude e perfeição física através de intervenções invasivas, levando a protagonista à autodestruição. Helter Skelter ainda critica o culto à estética e a mercantilização do corpo feminino, questionando os sacrifícios exigidos para manter a notabilidade em uma cultura que glorifica a juventude.
Nesse sentido, a monstruosidade que emerge em A Substância, pode ser interpretada como uma resposta à dinâmica sobre uma manifestação literal dos medos e ansiedades em torno do envelhecimento e do lugar da mulher na sociedade. Assim como Barbara Creed explora a ideia da monstruosidade feminina, o filme parece personificar a resistência das mulheres em ceder à invisibilidade que lhes é imposta à medida que envelhecem, transformando essa luta em algo assustador e brutal, como um espelho distorcido, revelando a face sombria de uma indústria que, em sua busca pela eterna juventude, acaba devorando suas próprias estrelas.
É muito bom que exista o horror, um gênero que se molda, se desafia e evolui constantemente. E, tão bom quanto a existência do gênero, é que exista realizadores que entendem e sabem explorar tão bem o poder da imagem no horror. O filme estreia nesta quinta, 19 de setembro nos cinemas. Vá ver!
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