O Dia que Te Conheci (2024)


 Eu queria começar este texto de outra forma, talvez algo menos pessoal e emocionado, mas não vejo como. O Dia Que Te Conheci é um filme que te toca e te abraça de maneira arrebatadora. Sua sensibilidade transcende as barreiras da tela e, por mais que eu tente me distanciar emocionalmente, é impossível não ser afetada pela forma como a história se desenrola. Comédias românticas, de uma forma geral, costumam me causar certo incômodo pela previsibilidade e idealização do amor, no entanto, a obra do mineiro André Novais Oliveira escapa dessas armadilhas de gênero com uma abordagem que parece respeitar o tempo das emoções e a complexidade dos sentimentos humanos. 

André é conhecido por seu estilo intimista e realista, seus filmes como Ela Volta na Quinta (2015) ou Temporada (2018), já demonstraram características que Novais tem como foco as relações cotidianas e familiares que, muitas vezes se misturam com realidade e ficção de uma forma bem naturalista, explorando temas como memória, classe e afeto. Aliás, muito disso está presente na maioria dos trabalhos da produtora Filmes de Plástico a qual é co-fundador junto de Gabriel Martins, Maurilio Martins e Thiago Macêdo Correia. No curta Fantasmas (2010) - um dos melhores curtas já feitos se não viu ainda, corra atrás - André aborda a questão do luto, solidão, memória e da presença dos mortos na vida cotidiana, tudo com uma nuance e uma atmosfera contemplativa que evoca muitos acontecimentos caracterizados pelo “fora de quadro”. 

Desde o início de O Dia que Te Conheci, fica claro que não estamos diante de uma narrativa convencional. Logo na abertura, a câmera permanece estática, focada em uma estante repleta de objetos enquanto, ao fundo, ouvimos quase quatro minutos da música “Solto” do rapper Djonga. Esse momento inicial sinaliza que a cena musical local também faz parte daquela trama e que o filme segue seu próprio ritmo, sem a urgência de entregar os pontos que se esperaria de uma comédia romântica tradicional. O foco aqui não é o destino final, mas a jornada emocional e pessoal dos personagens que vão se alinhando à medida que as conversas, as convergências, os problemas e a sintonia vão crescendo entre os dois. É justamente essa sensibilidade que faz a trama se destacar, ao tratar o bem-querer de forma autêntica, sem recorrer a clichês ou soluções fáceis. Novais oferece uma visão do romance que, em vez de seguir fórmulas, respeita o tempo e as sutilezas de cada relacionamento.

Renato Novaes e Grace Passô são Zeca e Luísa. Zeca tem dificuldade de acordar cedo e por isso vive pulando de emprego em emprego por não conseguir chegar cedo, ele agora trabalha na biblioteca de uma escola, a mesma de Luísa. Eles só se cruzaram uma vez, nada para ficar marcado na vida dos dois, até que o destino quis que eles se cruzassem novamente, só que dessa vez sendo Luísa a encaminhadora de más notícias: a demissão de Zeca. É a partir daí, de uma carona oferecida por Luísa e de um convite para um Chopp que a cruzada dois se dá. Ela decidida e atirada, ele meio que alheio e desatento ao que acontece. Conversa vai, conversa vem, confissões e algo em comum: a neurodivergência cada vez mais comum do pós pandemia. Um aspecto que chama atenção e quebra expectativas no gênero é o fato de eles serem um casal que foge completamente dos padrões que costumamos ver em obras assim. 

Ainda é triste que isso precise ser destacado: duas pessoas pretas, periféricas, gordas, com saúde mental fragilizada, que se atraem e se conectam, são mais comuns do que imaginamos. Nesse ponto, André Novais acerta em cheio ao trazer essas discussões para o nosso contexto. Ele enfrenta uma problemática que há décadas permeia o cinema, em que mulheres gordas e pretas são frequentemente retratadas como figuras subservientes, presentes apenas para servir, cuidar e dizer "sim, senhor", raramente como mulheres com desejos, sensualidade e histórias que vão além do trauma e da subjugação. O mesmo vale para homens com o tipo físico de Zeca que, também são frequentemente marginalizados ou limitados a papéis estereotipados. Em vez de serem mostrados como indivíduos com complexidade, eles acabam representados como figuras brutas, violentas ou apenas funcionais para a trama como alívio cômico. André, no entanto, subverte essas convenções, mostrando Zeca e Luísa como pessoas com sentimentos, desejos e história própria. Ao fazer isso, O Dia que Te Conheci não só amplia a representatividade no cinema, mas também humaniza esses personagens de maneira rara e necessária, permitindo que eles existam plenamente, com todas as suas camadas e contradições e facilitando nossa identificação com eles e consequentemente a imersão na história daqueles dois. 

Estamos tão imersos na história que, desde o início, torcemos intensamente para que tudo dê certo entre os protagonistas. Quando chega ao fim, em uma cena simples, maravilhosamente pensada e tão carregada de cotidiano, somos surpreendidos. Não há grandes reviravoltas ou declarações dramáticas; o desfecho é sutil, mas profundamente tocante, deixando no espectador um afago no coração e aquele gostinho de “quero mais” de acompanhar a vida desses dois. Um dos momentos mais marcantes na pré-estreia aqui em Recife, durante o debate com o diretor, foi quando os mediadores destacaram o conforto que os personagens demonstram em seus silêncios, algo que ressoa como um indicativo poderoso de que a relação tem uma base sólida, de cumplicidade e confiança. Em vez de serem consumidos pela necessidade de preencher os vazios com diálogos constantes, jogos de sedução ou gestos exagerados, eles se entendem em pequenos momentos de quietude, o que fortalece ainda mais a impressão de que essa história de amor, longe dos clichês, tem futuro. 

O Dia que Te Conheci estreia nesta quinta dia 26 nos cinemas brasileiros, vá, veja e se apaixone.



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