Frequentemente considerado um diretor perturbador, Yorgos Lanthimos fez seu nome explorando temas de disfunção social e pessoal de maneiras surreais e absurdas, desafiando as convenções tradicionais de narrativa e oferecendo abordagens alegóricas sobre fé, religião, morte, redenção e família. Nada de novo para o diretor grego, que adora distorcer a realidade em suas obras. Mas qual realidade ele está distorcendo desta vez?
Tipos de Gentileza, escrito em mais uma parceria com Efthimis Filippou, a primeira desde 2017, apresenta três histórias antológicas que exploram como a moralidade social e religiosa afeta as relações, comportamentos e vidas das pessoas. Esses temas não são novidade para Lanthimos, que já os abordou em filmes anteriores, como Dente Canino (2009), onde explora questões de família, autoridade e obediência dentro do núcleo familiar, sempre desafiando o espectador a questionar o que considera normal. Também o fez em O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), meu favorito, onde ele convida o espectador a refletir sobre a natureza do sacrifício, da justiça e da fé em um mundo que parece estar além da nossa compreensão. Até em Pobres Criaturas (2023), Yorgos brinca igualmente com essas moralidades, ao trazer questões que envolvem criador e criatura, tradição e o papel da mulher dentro e fora dessa estrutura.
Em quase três horas de duração, assistimos a três histórias que aparentemente não tem relação. Cada segmento leva em seu título as abreviações de um personagem, RMF, que é interpretado por um amigo de Lanthimos na vida real, Yorgos Stefanakos. Ele, apesar de ser um elo entre as histórias, mal aparece nelas. É como se Lanthimos e Filippou quisessem criar enigmas com a sigla ou com a presença de RMF nas tramas. Como quisesse, não. Ele cria! Inúmeras teorias sobre a sigla ou sobre o que o personagem representa foram surgindo na internet, mas, não sou eu quem vai destrinchar todas elas aqui. Também em comum em todos os segmentos são os atores, entretanto, a cada conto, interpretam personagens diferentes, mesmo que você fique com a sensação de que são as mesmas pessoas em uma espécie de experimento social-científico. Ou personagens usados apenas simbolicamente como alguma metáfora religiosa. Divagando.
Em A Morte de RMF, Jesse Plemons é Robert, subordinado de Raymond (Willem Dafoe) a quem pinta e borda com os desejos e vontades de seu empregado favorito. É Raymond quem escolhe tudo que Robert faz ou deixa de fazer, desde a hora que faz sexo, o que deve beber, com quem se casa e se vão ter filhos ou não. É então que Robert, ao negar o pedido de Raymond de matar um homem, RMF, em um suposto acidente de carro, vê sua vida e felicidade em ruína. Uma espécie de brincadeira entre Deus, pecado e fé. Lanthimos joga aqui com a anulação e a obediência que algumas pessoas têm ao estar diante de uma força maior. Mas, por qual motivo Raymond queria a morte de RMF, mesmo este tendo seu próprio desejo de morte? Por enquanto, ficaremos sem respostas.
RMF Está Voando é o segundo conto e traz novamente Plemons, dessa vez como Daniel, um policial que anda abalado com o sumiço da esposa. Liz (Emma Stone) é uma bióloga marinha que, em uma missão no mar, sumiu junto com outras pessoas, até que um dia ela volta resgatada por RMF que aqui é um piloto de helicóptero, mas mal aparece. Daniel acha que Liz voltou diferente e passa a observar seu comportamento, até que, para testar a esposa, começa a fazer pedidos estranhos como cortar um dedo e cozinhá-lo. É um conto que se mistura entre o horror, canibalismo, desejos, sexo, psicopatia e até doppelgänger. Mas é o inquestionável talento de Plemons com seu olhar congelante que chama a atenção nesse conto. Muito focado em seu sofrimento, ele se revela uma autêntica entidade da atuação ao conseguir dar equilíbrio e somar tons de inquietação moral em um mesmo filme e em papéis que, mesmo sendo "pessoas comuns", carregam imensa complexidade moral. Completam ainda essa fábula estranha Mamoudou Athie e Margaret Qualley, um casal que acrescenta textura, tesão e profundidade em uma história que questiona até onde vai o comprometimento de um amor incondicional, podendo trazer, também, interpretações religiosas. Tem um final mais aberto, lembrando muito seu curta Nimic (2019).
No terceiro e último segmento, RMF come um Sanduíche, as alegorias religiosas ficam mais explícitas ao trazer para a discussão um culto onde Emily (Emma Stone) e Andrew (Jesse Plemons) seguem os líderes Aka (Hong Chau) e Omi (Dafoe) os quais defendem a pureza corporal de maneiras extremas. Plemons assume um papel mais de coadjuvante em relação a Emma nesse aqui, mas sua devoção é tanta que, para permanecer puro, chega ao ponto de beber água de um recipiente cheio com líquido de banho e fluidos de Aka e Omi.. Além disso, os devotos só podem praticar sexo com seus lideres, correndo o risco de se contaminarem e serem expulsos. Já Stone, assume o protagonismo, mesmo que algumas de suas atitudes e apego a uma velha vida, ameace seu status e permanência no culto. Ela e Plemons assumem a missão de encontrar uma jovem mulher que tenha poderes mágicos de trazer mortos de volta à vida, uma jornada que os desafia em entradas e saídas de necrotérios, medições de corpos e os fazem enfrentar também ataques de violência sexual e crueldade animal. Como sabido, Lanthimos faz que cada detalhe de seus filmes agregue valor e significado a obra, não à toa as cores aqui ganham contornos extras, como o carro roxo, sua roupa marrom e as cores branca, azul e amarela que tomam conta. Ainda no elenco, Margaret Qualley interpreta duas gêmeas onde uma delas pode ser a tão esperada salvação do culto. No entanto, para um ser, a outra tem que morrer. Coisas da vida...
Lanthimos está de volta! Essa foi a frase mais repetida após a primeira exibição de seu filme em Cannes. Muitos afirmaram que esse retorno marca um afastamento da popularidade que seus dois últimos filmes alcançaram em termos de aceitação, premiações, distribuição, bilheteria e discussões, já que era incomum, a não ser em nichos, ver seu nome e suas obras sendo amplamente debatidos, tanto nas redes sociais quanto fora delas. Mas, fiel ao seu estilo característico de explorar quedas e desgraças, o diretor grego parece querer desafiar o público que conquistou desde 2018 (ou 2017) a continuar lhe acompanhando. Tipos de Gentileza é um filme espinhoso, hostil e que não oferece catarse. Ademais, não apresenta a exuberância visual de Pobres Criaturas ou mesmo de A Favorita. É, de fato, um retorno ao seu estilo mais usual, focado no cotidiano, em um mundo onde as pessoas precisam fazer de tudo para sobreviver, seja no plano material ou espiritual.
Em cada um dos três segmentos, Lanthimos destaca as jornadas dos atores como o ponto alto do filme, proporcionando um espaço onde o elenco pode expor suas vulnerabilidades em cada história e contexto, demonstrando que, muitas vezes, a experiência de assistir a um filme reside no percurso, e não apenas em seu desfecho. Quanto mais se reflete sobre o filme, mais camadas e subtextos emergem. Trata-se de uma trilha sombria, política, cômica e peculiar. Ainda bem!
Disponível nos cinemas brasileiros a partir de 22 de agosto.
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