O aviso ignorado de vozes marginalizadas em filmes de terror e ficção científica.

Esses dias estava revendo Alien, O Oitavo Passageiro (1979) e me chamou atenção o personagem Parker, vivido pelo excelente e saudoso Yaphet Kotto. Enquanto observava atentamente determinadas decisões, falas e comportamentos dele, outro (e outros) personagens me vieram à lembrança como Jefferson Jackson de O Rei dos Zumbis de 1941 interpretado pelo também excelente Mantan Moreland. Semelhanças que vão além de estarem como coadjuvantes em um filme de terror e ficção científica, embora os gêneros, aqui, tenham bastante relevância, já que nesses filmes, tende a se desenvolver uma certa tensão invisível antes mesmo dos monstros ou da ameaça sobrenatural aparecerem. É aí que entram Jefferson Jackson e Parker, dois personagens que ocupam posições únicas em seus determinados filmes e, cujas vozes, embora incisivas e cheias de sabedoria prática, são ignoradas, como veremos no desenrolar deste texto. 


O Rei dos Zumbis (1941) é um filme de terror e comédia dirigido por Jean Yarbrough que se passa durante a Segunda Guerra Mundial e envolve um trio de personagens que acabam em uma ilha caribenha após um pouso forçado. Ao se refugiarem em uma mansão, eles encontram o Dr. Sangre, um cientista austríaco e agente secreto de algum governo europeu que está realizando experimentos com zumbis os controlando por meio de vodu. Jefferson “Jeff” Jackson é o motorista e assistente de um dos protagonistas, interpretado por Dick Purcell, e é o principal fornecedor de humor ao longo do filme. Mantan está em seu típico papel de terror, ou como diz Mark Harris, no tropo do “Spook” ou o “fantasma simplório e nervoso”, aquele que é assustado por todas as coisas assustadoras e ainda serve comicidade. Seu papel é o do servo leal, porém covarde e, mesmo entregando humor, coisa que Mantan fazia muito bem, seu personagem no filme refletia muito os estereótipos de representação racial da época, o do “malandro tolo" comentado por Robin R. Means Coleman em Horror Noire. Como a maioria dos personagens que Moreland fazia, em O Rei dos Zumbis, ele assume uma postura nervosa, com reações exageradas ao perigo, principalmente ao sobrenatural, e muitas de suas falas e ações se baseiam em ser o alívio cômico, ao contrário dos personagens brancos que são tidos como homens sérios e heroicos. Hoje Moreland é tido e lembrado como um dos grandes atores negros, embora tenha sido limitado a papeis de subserviência e exagero cômico. Apenas um reflexo dos desafios que atores afro americanos enfrentaram na indústria cinematográfica lá na primeira metade do século XX. 

Já no filme de Ridley Scott de 1979, Yaphet Kotto é Parker, um dos membros da tripulação e engenheiro chefe da Nostromo responsável não só pela manutenção e operação dos sistemas mecânicos da nave, mas também dos motores e outros mecanismos essenciais. Ele e Brett, interpretado por Harry Dean Stanton, também mecânico, volta e meia estão discutindo sobre discutem suas relações trabalhistas e aumento salarial quando são obrigados a fazerem coisas as quais não foram contratados. A camaradagem dos dois acaba por ser o contraponto realista e comum da narrativa extraordinária e ficcional que se desenrola depois. No caso de Parker, nosso objeto de discussão aqui, ele é apresentado como pragmático, direto e, por vezes, cômico, lembrando muito Jefferson, Entretanto, ao contrário da covardia pela sobrevivência de Jefferson, Parker demonstra mais coragem e com ela uma vontade de proteger os outros membros da tripulação. Ele não tem medo de expor suas opiniões e insatisfações em relação às decisões da liderança, até mesmo quando a segurança deles é posta à prova por escolhas questionáveis pela própria Weyland-Yutani Corporation, empresa representada pela inteligência artificial Mother. 

É quando a ameaça espacial na forma do alienígena, principalmente naquele ambiente claustrofóbico que o comportamento inicial descontraído de Parker é deixado de lado para assumir responsabilidade e heroísmo. Parker se torna crucial na luta pela sobrevivência na Nostromo, especialmente para defender Ripley (Sigourney Weaver) e Lambert (Veronica Cartwright). Note que nem ele, nem Jefferson morreram logo de início. Até aqui já deu para perceber as semelhanças assim como algumas diferenças entre os dois personagens, ambos estão situados em contextos onde a humanidade é confrontada por forças além de sua compreensão, zumbis e um alienígena mortal. Eles também ocupam funções subalternas dentro de suas histórias, são trabalhadores práticos desempenhando papéis secundários na hierarquia social das respectivas narrativas. O alívio cômico em Jefferson é mais explorado, embora Parker tenha seus momentos, eles são mais sutis. 

Toda essa dinâmica entre os dois personagens foi para chegar no maior ponto em comum entre eles, o dos avisos ignorados e a importância deles dentro das duas tramas. Mesmo com percepções corretas e aguçadas do perigo que os cercam, suas vozes raramente são levadas a sério, ou pela posição das funções ou pelos estereótipos raciais. Mesmo as reações de aviso de Mantan sendo exageradas e cômicas, elas estão corretas haja visto que desde o início ele percebe que algo de há algo de muito errado naquela ilha, naquela casa e naquele médico, no entanto, seus conselhos são descartados tidos como fruto de superstição ou covardia, levando os outros personagens a subestimar o verdadeiro perigo. Falta de aviso não foi, né? Kotto, mesmo em outro contexto temporal e racial mais avançado, também tem seus bons avisos ignorados. Desde o início questiona as decisões da liderança para investigar o sinal alienígena ou quando sugere congelar o Facehugger que agarrou a cabeça de  Kane (John Hurt), ou quando sugere medidas práticas e eficazes para combater o Xenomorfo. 

Esse exercício de gênero e de personas que passam pelas questões relacionadas a conselhos ignorados e posicionamento social, pode ser visto como um tropo narrativo em outras dinâmicas narrativas que também estão ligadas a maneira hierárquica dos personagens até terem sua sabedoria prática silenciada. O reflexo de algo bem maior, se formos de fato procurar a problemática. No horror ou na ficção cientifica, essas regras de hierarquia tendem a sufocar essa sabedoria para que o monstro ou a ameaça precise se manifestar, só que demonstra também a incapacidade social que determinados grupos privilegiados tem de ouvir e agir com base nesses conselhos, a não ser que o grupo do aviso esteja dentro de outro tropo narrativo, como os “negros místicos ou mágicos” detentores de uma sabedoria advinda não da experiência de vida, mas de uma experiência sobrenatural que está acima da nossa capacidade de entendimento e compreensão. 

Além de Jefferson e Parker, há vários outros personagens que também se enquadram nessa dinâmica, em maior ou menor proporção. Pensei em alguns como Ben, vivido por Duane Jones em A Noite dos Mortos-Vivos (1968, George Romero), onde para sobreviver à invasão zumbi, ele, por diversas vezes oferece soluções práticas, encontrando resistência de alguns personagens, mas especialmente de Harry Cooper, um cara branco e turrão. Ou mesmo Childs, vivido por Keith David em O Enigma de Outro Mundo (1982, John Carpenter) que, ao longo do filme, demonstra desconfiança em relação a outros personagens e até questiona sobre decisões de como lidar com a ameaça, mas seus avisos e conselhos são vistos com ceticismo por parte de membros da equipe. Só que é em Corra! (2017) de Jordan Peele, que o aviso, além de ser acentuado, é subvertido. Temos o personagem Rod Williams, interpretado por Lil Rel Howery, amigo de Chris (Daniel Kaluuya), ele é agente de segurança, uma profissão subalterna, de certa forma e, o alívio cômico do filme. Seus avisos e desconfianças em relação a namorada branca do amigo e sua família, são tidos muitas vezes como jocosos e paranoicos, só que habilmente Peele subverte o tropo provando que os amigos exagerados e cômicos merecem sim ser levados a sério quando coloca esse mesmo amigo sendo o grande salvador de Chris. 

Nada disso tem a intenção ou o propósito de desmerecer tais obras, cada uma delas tem sua importância dentro do cinema e do cinema de gênero, embora possamos com o olhar de hoje perceber certas problemáticas e ainda assim continuar as apreciando. Esta análise foi mais um exercício de percepção particular e semelhanças entre dois personagens e atores que são tão queridos quanto talentosos, mas que sofreram em algum momento pelas razões raciais e sociais de uma indústria perversa e cruel com minorias. Se algo está mudando no que tange a representação de filmes com negros e filmes negros, devemos a estes que cavaram e construíram caminhos nem sempre fáceis, enfrentando preconceitos e limitações impostas pela indústria. É graças ao talento e resiliência desses atores e cineastas que hoje vemos mais diversidade e complexidade nas histórias que chegam às telas. Ainda há muito a ser feito, mas o reconhecimento de seu trabalho e o impacto que tiveram nos encoraja a continuar demandando representatividade em um meio historicamente excludente. Que possamos sempre valorizar essas vozes, que foram e continuam sendo fundamentais para moldar um cinema mais justo.











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