Entrevista com o Demônio (2024)


"Senhoras e senhores, fiquem ligados, pois pela primeira vez teremos uma transmissão ao vivo na televisão...enquanto tentamos nos comunicar com o diabo" - Jack Delroy

Os talk shows nos EUA surgiram ainda com as primeiras transmissões de televisão nos anos 1940 e 1950, tendo The Ed Sullivan Show como aquele que ajudou a definir o formato de programa de entrevistas. Mas, foi em meados dos anos 50 que The Tonight Show com Steve Allen como apresentador, estabeleceu muitos dos elementos clássicos dos programas que conhecemos hoje, como monólogos de abertura, entrevistas com celebridades e apresentações musicais. Em seguida, vieram a assumir o comando Jack Paar e, posteriormente, Johnny Carson que, consolidaram a estrutura durante suas respectivas épocas, e, cada uma delas trouxe inovações e novos talentos, que moldaram todo um padrão que continua a ser popular e influente na cultura contemporânea até hoje. 

No entanto, foi Johnny Carson o seu maior expoente, em um programa que durou quase 30 anos (de 1962 a 1992), sempre apresentando excelentes níveis de audiência e servindo de norte para praticamente todos os programas similares que vieram depois dele. As atrações deste tipo de programa vão desde artistas populares a políticos e estrelas de cinema, se fosse interessante e interessasse ao público, lá eles estariam e as altas audiências garantiam a presença de anunciantes das mais diversas áreas. Um dos personagens mais memoráveis de Carson era Carnac the Magnificent, um "vidente" que adivinhava respostas para perguntas guardadas em envelopes lacrados. E foi assim que os talk shows se tornaram tão populares que até podemos chamá-los de instituições estadunidenses.

Em 2024, o diabo finalmente faz sua estreia em um talk show, mas, calma! Ele aparece em um filme que emula através de um falso documentário, justamente os populares programas de entrevistas, só que sem trazer uma premissa necessariamente inovadora. "Entrevista com o Demônio" se destaca pela sua estética impressionante fiel à década de 70, pelas atuações envolventes, pela sátira ao pânico satânico e cultos que imperava naquela época, porém falha em oferecer algo  refrescante ao estilo de falso documentário, como já vistos em obras como "Ghostwatch" (1992), conhecido por sua abordagem inovadora e controversa, mesclando elementos de documentário e drama para criar uma experiência assustadora e realista. Transmitido ao vivo como um especial de Halloween da BBC, o filme simula um programa de investigação paranormal autêntico na televisão. Outro exemplo é o episódio especial "Inside N° 9 Live: Dead Line" da série "Inside N° 9", também da BBC, que homenageia "Ghostwatch" ao adotar uma execução ao vivo para criar uma atmosfera de suspense e interatividade. Além disso, "História do Oculto" (2020), da Argentina, e "O Dia da Besta" (1995), da Espanha, exploram manipulação de informações, conspirações e cultos através de formatos televisivos, destacando-se pela crítica social e pelo humor ácido que permeiam suas narrativas.

Mas, calma de novo! Entrevista com o Demônio dos diretores irmãos Cameron Cairnes e Colin Cairnes, vai além de todas essas referências e brincadeiras com talk show, Antes mesmo do filme adentrar na transmissão das fitas encontradas daquela noite fatídica, todo um preâmbulo é feito com narração de Michael Ironside, para quem não tá ligando o nome a pessoa, é aquele que explode a cabeça em Scanners, Sua Mente Pode Destruir (David Cronenberg, 1981). Essa introdução serve para nos deixar a par com um monte de informação que pode (ou não) ter relevância ao longo da fita sobre a vida pessoal e profissional do protagonista, Jack Delroy (David Dastmalchian), como sua associação  ao clube secreto The Grove que, não por acaso, é usado como referência direta ao clube Bohemian Grove, uma sociedade secreta só de homens que existe na Califórnia desde 1872. O clube tem sido objeto de várias especulações que vão desde rituais estranhos a cultos por uma coruja gigante e passando por orgias sexuais gigantescas. 

No falso documentário inicial, a narração insinua que Delroy, em busca de sucesso e picos altos de audiência, tenha feito algum tipo de pacto com o demônio em um dos rituais do clube. O demo não só aparece no especial de halloween do The Night Owls, seu programa noturno, como também mora nos detalhes. É assim que o filme vai soltando suas iscas de referências à medida que a trama avança. Saber da existência real desse clube, toda sua iconografia e de todo o enigma envolto desse culto, fez Entrevista com o Demônio ganhar novos contornos para mim. Virou um filme excepcional por causa disso? Tá longe. Ele ainda deixa muito a desejar no que tange sua ideia inicial de ser um falso documentário que se funde ao Found Footage, para logo em seguida virar uma ficção. Aquele final que o diga. A impressão que passa, é de que os diretores preferiram trair sua própria narrativa em prol de uma conclusão expositiva, desnecessária, chata e sem impacto algum.

Mesmo com a revisão, ainda considero uma produção confusa em relação às perspectivas, como falei, ele trai sua ideia inicial quando decide por certas escolhas estéticas e enquadramentos, principalmente nas cenas de bastidores. A parte que mais convence é quando a tela entra na proporção quadrada e com lentes difusas que emulam bem as usadas na época. Ponto para o diretor de fotografia Matthew Temple e também para os irmãos Cairns que editaram o filme. Saliento aqui outro ponto positivo e que talvez só seja sentido se visto no cinema ou com um equipamento de som decente. O desenho de som do filme é uma atração à parte, principalmente no ato final, quando o demônio toma conta da menina e faz todo seu estrago. A microfonia, os zumbidos, chiados, cracklings e todo barulho relacionado a falhas de aparelhos eletrônicos, são bem sentidos e até incomoda de certa forma, parece até que estamos lá ao vivo no estúdio. Todavia, as cenas de bastidores, filmadas em preto e branco e apresentadas em widescreen, ficam perdidas naquele contexto e acaba gerando dúvidas como: Quem filmou essas cenas? 

Além disso, o talento das performances de Rhys Auteri como Gus, o co-apresentador e músico do programa; Fayssal Bazzi, que interpreta o vidente Christou; Ian Bliss, no papel do cientista cético Carmichael Hunt; Laura Gordon como June, a doutora em parapsicologia; e Ingrid Torelli, que traz Lilly à vida como a garotinha que entra em contato com o demo, aliado à meticulosa recriação da atmosfera da época e ao inegável talento dos diretores na produção daquele falso programa, suscita em mim sentimentos conflitantes em relação ao filme. Longe de se reduzir a uma avaliação simples de bom ou ruim mas ele acaba se revelando uma obra até mediana. Outro aspecto que contribui para a decepção definitiva, é o uso de inteligência artificial na criação de alguns cards de transição com tema de Halloween "Voltaremos logo". Entretanto, nada disso fez com ele deixasse de ser o filme mais visto da Shudder. De acordo com o MovieWeb, a produção se tornou o filme mais transmitido na história do streaming em seu fim de semana de estreia em 19 de abril, superando os filmes recordistas anteriores O Mal que nos Habita e V/H/S/99 .

Ainda assim, bato palmas para David Dastmalchian, que tem talento suficiente e desenvoltura para lidar com aquele formato de programa, desde suas entradas, os monólogos de humor, as respostas rápidas e o charme de um apresentador de talk show. Espero vê-lo mais em papéis de destaque em Hollywood, de preferência no terror, por favor. E, assim, na boa, se todas as inconsistências que mencionei até aqui não te incomodarem, seu aproveitamento de Entrevista com o Demônio vai ser um sucesso. Por isso, como digo sempre: vá, veja e tire suas próprias conclusões. 

Visto em cabine à convite da Diamonds Brasil e Espaço Z Assessoria. O filme estreia nos cinemas nesta quinta-feira, dia 04 de julho.

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