Fúria Primitiva (2024)

"Durante toda a sua vida você lutou para sentir dor. Você precisa lutar por um propósito. Lute por todos nós, é hora de lembrar quem você é" - Alpha

Fúria Primitiva não traz "fúria" apenas no título. A estreia de Dev Patel por trás das câmeras é marcada por muitos tiros, banhos de sangue, ossos quebrados e pele rasgada, elementos dignos de uma história de vingança intensa. Patel não poupou esforços em sua interpretação, chegando a ter machucados reais em diversas partes de seu corpo e até uma infecção nos olhos. Sangue, suor e lágrimas foram levados ao extremo neste filme. Porém, já na direção...

Apesar de ter uma premissa comum de vingança — um garoto da periferia que perde tudo e vê a mãe ser assassinada por um agente publico corrupto e um guru igualmente corrupto, ambos adorados pela cidade — a trama se destaca pela profundidade emocional de Kid/Bobby (Patel). Crescendo com raiva e culpa reprimidas, e misteriosas marcas de queimadura nas palmas das mãos, ele se lembra das histórias que sua mãe contava sobre Hanuman, o deus-macaco hindu. Essas histórias são sua conexão mais forte com a memória dela, além da lembrança vívida do assassino. Kid se torna um lutador amador, competindo por dinheiro e usando uma máscara de macaco durante as lutas, uma alusão ao deus-macaco Hanuman. No entanto, ele é frequentemente espancado por lutadores mais populares, mal conseguindo ganhar dinheiro. Essa jornada de sofrimento e luta intensifica sua busca por vingança, tornando a narrativa não apenas uma história de retaliação, mas também um conto de superação pessoal e resiliência.

Tudo muda quando Kid recupera a carteira roubada de uma figura influente da cidade. Isso lhe abre uma oportunidade de emprego em um clube semi-secreto onde figurões da política e ricos empresários se encontram com prostitutas de luxo regados das melhores bebidas e drogas. Assim como na sociedade indiana, o clube possui um sistema de castas, e Kid começa no nível mais baixo, lavando pratos e limpando o chão. Com o tempo e com a amizade de Alphonso (Pitobash Tripathy), ele consegue subir de posição, tornando-se garçom para o grupo mais seleto do local. É nesse ambiente que se inicia sua ruína, mas também sua redenção. O ponto crucial ocorre quando Bobby fica cara a cara com Rana no banheiro e aponta a arma em sua direção. Sua maior chance. Mas o jovem ainda não está preparado e, após uma perseguição policial, ele leva um tiro e vai parar em um templo salvo pelas Hijras que cuidam não só de sua carcaça, mas também de sua alma. Essa reviravolta marca o início de uma nova fase em sua vida, onde ele encontra não apenas a chance de se vingar, mas também de se redescobrir e se reerguer.

A ação de Dev Patel, produzida pela Monkeypaw de Jordan Peele, aborda temas sociais sensíveis na Índia, como a luta de classes, corrupção, exclusão de minorias, gentrificação, empreendimentos criminosos superfaturados e preconceitos de gênero. Quem poderá combater essas mazelas? Fúria Primitiva segue a premissa de inúmeros filmes de ação policial, onde um vigilante solitário, traumatizado por algum evento, combate o crime sozinho. Inspirando-se em referências como John Wick, The Raid e diversas produções indianas, a estreia de Patel acaba sendo morna. No entanto, é um bom exercício de linguagem fílmica, especialmente no uso de movimentos de câmera que alternam entre terceira e primeira pessoa. Patel frequentemente nos coloca em sua perspectiva, seja como lutador, infiltrado ou vingador, o que achei um recurso interessante. Embora não seja uma novidade, no contexto das cenas funcionou bem, adicionando uma camada de imersão à narrativa.

Kid/Bobby, tem como alvo Rana (Sikandar Kher), um delegado corrupto e desonesto, facilmente reconhecível por seus anéis e brincos chamativos. Esses acessórios permitiram a Bobby identificá-lo, facilitando sua busca por vingança. É através de numerosos flashbacks que somos apresentados à infância de Bobby e aos eventos traumáticos que afetaram sua comunidade e sua mãe. As idas ao passado são tantas que se tornam até repetitivas, consequentemente cansativas.

Um ponto positivo da trama é o templo das Hijras, liderado por Alpha (Vipin Sharma), que desempenha um papel crucial na ressurreição do jovem. A narrativa aborda a questão do terceiro gênero, que, apesar de ser aceito na sociedade indiana, ainda enfrenta estigmas, especialmente durante o período eleitoral retratado no filme, com o avanço conservador e violento. O templo de Alpha está passando por dificuldades e as Hijras veem em Bobby um sinal divino, uma espécie de emissário vingador. Entre conselhos filosóficos e treinos rigorosos, Bobby recupera sua força, aprendendo a controlar sua fúria sem perdê-la, permitindo que ele execute sua vingança com sucesso. O diretor Patel destaca essas personagens, compartilhando o protagonismo vingador com elas. Gostei especialmente da cena em que elas aparecem vestidas como a deusa Kali para salvar Bobby; foi emocionante e me fez vibrar.

Fúria Primitiva aborda temas relevantes, mas decepciona como obra de ação. Embora agregue uma cultura não ocidental, sua fórmula é previsível e não oferece muitas novidades, satisfazendo apenas quem busca cenas de luta. Para quem deseja realmente boas sequências de ação, é melhor recorrer aos já mencionados John Wick e The Raid, ou aos originais indianos, que impressionam pelo espetáculo, pela elaboração das coreografias e pelas cenas ousadas que muitas vezes desafiam a física, fazendo até com que os protagonistas pareçam ter superpoderes.

Patel poderia ter sido mais ousado, mas optou pelo convencional. Espero sinceramente que ele consiga se desvencilhar dessas fórmulas antigas, pois mostrou potencial e paixão em cada take.



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