Somos feitos de histórias. Histórias que geram memórias que geram mais histórias. Essas histórias não apenas refletem nossa relação com o mundo e com as pessoas ao nosso redor, mas também são essenciais para nossa identidade e compreensão da vida. Cada indivíduo é moldado pelas suas próprias experiências e narrativas pessoais. São essas histórias pessoais, memórias e interações com o mundo e com os outros que nos definem. Elas têm o poder de educar, inspirar, provocar reflexões profundas e, principalmente, de nos conectar uns com os outros por meio das nossas narrativas individuais e coletivas.
Foi assim com os diretores Nara Normande e Tião que, a partir de suas próprias memórias, seja em uma praia de Maceió, ou em casas de interior ou em prédios de Recife, construíram a base do que é Sem Coração e que vem desde o curta de 2014 até ser desenvolvida mais profundamente no longa de 2023. As incertezas, a efervescência e energia de adolescentes que querem conquistar tudo, conhecer tudo, desafiar tudo, mas tem receio do novo. Tudo pela visão de duas meninas, uma chamada Tamara (Maya de Vicq) e outra conhecida como Sem Coração (Eduarda Samara) por causa de uma cicatriz que carrega no peito oriunda de uma cirurgia que fez na infância.
O ano é 1996, litoral de Maceió, Guaxuma, uma praia paradisíaca e pesqueira, o Brasil vive o auge da morte misteriosa de PC Farias, Tamara vive os últimos dias no local antes de partir para a universidade de Brasília. Ela vive também o mistério do que estar por vir, o medo de viver o novo e a ansiedade da transição. Mas, por enquanto, Tamara, seu irmão Vitinho, Binho, Galego, Cidão, Vânia e Íris, um grupo de amigos de longa data que passam dias e noites juntos. Entre conversas, confissões e brincadeiras, o grupo também explora o local, tomam banho de mar, andam de bicicleta ou de carro e invadem casas de veraneio desocupadas, ou seja, tudo dentro da normalidade da adolescência. Só que essa aparente paz é meio que perturbada quando eles se veem diante de uma figura intrigante conhecida como Sem Coração. Filha de pescador, Sem Coração não tem mãe, está na mesma faixa etária do grupo de Tamara, mas não tem amigos nem amigas. Ela vive o dia a acompanhar o pai na pescaria e faz entregas dos pescados para os turistas.
Permeado de elementos fantásticos, como a estranha presença de uma baleia que ora aparece no meio dos coqueirais, ora dentro de uma piscina e ora no meio da praia, o filme mergulha nas metáforas que a figura imponente da Baleia possivelmente representa nessa história de auto descobertas, amadurecimento, libertação, redenção e trajetórias solitárias que buscam de alguma forma algum guia espiritual em momentos de crise. Não à toa, são as duas protagonistas que mais interagem com o animal ancestral, seja em sonho ou realidade, elas adentram uma fenda nessa baleia quase como uma espécie de rito de passagem. Desde que viu Sem Coração, Tamara não parou de pensar nela. Ao mesmo tempo, o grupo vivencia momentos sombrios, como se fosse um aviso de que a vida não é apenas aquilo lá, aquela paz, as brincadeiras e, claro, descobertas sexuais em uma piscina abandonada em que alguns garotos tem suas primeiras experiências justamente com ela, Sem Coração.
São nos dramas paralelos que Nara e Tião enfatizam um novo cinema fantástico nordestino, mesclando horror, drama social, história de amor, surrealismo e filme adolescente. Eles não esquecem as mazelas que assolam há tanto tempo o nordeste, como coronelismo, misoginia e homofobia. O lado obscuro do filme, é encantadoramente contrastante com o design de produção de Thales Junqueira e a cinematografia de Evgenia Alexandrova que captam perfeitamente não só a magia daquele paraíso local, mas também elementos de uma época que fazem de Sem Coração uma produção deveras especial, inesquecível e promissora ao priorizar, junto com os realizadores, uma visão de mundo mais voltada para dentro de si e de novas perspectivas quando quebram um certo estigma da estética da seca, da fome e da miséria como tem feito realizadores como Ramon Porto Mota, Mavi Simão, Daniel Bandeira, Petrus Cariry, Guto Parente, Kleber Mendonça Filho, Noá Banoba, Renata Pinheiro e tantos outros diretores e diretoras nordestinos.
Eu vi Sem Coração na pré-estreia promovida pela Sessão Vitrine Petrobrás no Cinema da Fundação Derby com a presença dos diretores e com Eduarda Samara. Foi incrível ouvir suas falas, ouvir do processo, de como aquela aldeia de pescadores recebeu a produção e saber que muito do filme foi vivido também por eles na vida real. O filme ficou comigo por semanas, cada dia escrevia um pouco sobre o que ainda sentia e reverberava em mim, das lembranças de uma infância/adolescência na década de 90, das amizades inseparáveis que a vida se encarrega de separar, dos primeiros amores, paqueras, das músicas nas festinhas de assustado, das descobertas sexuais e dos medos de uma nova fase. Pensei também de como é uma historia que ainda carrega traços de filmes de romances pessimistas, como Amor à Flor da Pele e das relações impossíveis de acontecer. Tamara e Sem Coração ainda ensaiam uma aproximação mútua, um beijo, um momento mágico e esperado por nós, espectadores, mas as circunstâncias de vida de cada uma precisa seguir por caminhos distintos, mesmo que sigam pela mesma estrada. Assim é a vida e a vida é assim.
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