A Cor Púrpura (2023)



A esperança pela irmandade...

Toda vez que se anuncia o remake de algum filme a reação que mais se vê é: “oh, não! mais um!”, principalmente quando os remakes são de filmes ditos canônicos como é o caso de A Cor Púrpura adaptado por Steven Spielberg em 1985 do romance de Alice Walker de 1982, indicado e vencedor de vários prêmios, que, confesso, o assisti ontem pela primeira vez. Claro que não vou fazer um texto comparativo, mas digo que a experiência de ver essa adaptação musical na frente do original, foi bem boa. Perceber as diferenças de resoluções, as decisões de esticar uma dor ou sofrimento, a trilha que muda indicando um tom mais triste ou comedioso, são vícios de Spielberg que me incomodam até hoje. Se ele colocar na cabeça que aquela cena existe só para o publico chorar, ele vai esticá-la e subir a música até te arrancar nossas lágrimas. Isso é ruim, nem sempre. Mas, incomoda pois, dependendo do que acontece na cena, acaba ficando desnecessário.

Essa adaptação musical dirigida por Blitz Bazawule que é uma adaptação musical da Broadway de Gary Griffin de 2004, atualiza e enriquece os textos de sua versão anterior, deixando a experiência fílmica, principalmente para nós, mulheres negras, mais especial por se identificar com várias falas e abordagens. 

Fantasia Barrino é Celie, uma garota negra de pele escura que viveu na Geórgia no inicio do século XX, mas antes de ser vivida por Barrino, Celie ganhou o corpo e a alma da também ótima e estreante Phylicia Pearl Mpasi. É ela quem dá o tom da protagonista vivendo Celie na juventude, estuprada por seu pai e forçada a ter dois filhos para depois aguentar a dor de ser separada deles. Conhecemos por Phylicia todo o início do sofrimento de Celie e dos motivos pelos quais ela não sorri e nem quase fala.

Celie ainda teve que sofrer com a separação da irmã Nettie, vivida por Halle Bailey e que some rapidinho do filme, mas não sem antes deixar sua marca e mostrar a relação poderosa de amor e afeto que as irmãs possuem, assim como o diferente tratamento que as duas recebem de homens por possuírem atributos físicos diferentes, inclusive do pai, um homem bruto, abusador e que acha que Nettie merece ter um futuro, ao contrário de Celie, a quem ele se refere como feia e que trata de uma forma violentamente rude, permitindo que a filha case com o igualmente rude Mister, vivido de forma brilhante e odiosa por Colman Domingo, um homem que tem fama de violento e que desconta todas as suas frustrações em Celie que, pode ser tudo naquela casa, de emprega a babá, menos esposa. Entretanto, seu comportamento muda por completo quando está diante de seu antigo interesse amoroso Shug Avery, uma mulher emancipada que toma as rédeas da própria vida e vira uma cantora de relativo sucesso, ela paga um preço por isso, o rompimento com seu pai, o pastor da cidade.

Avery é interpretada por Taraji P. Henson, vive em Memphis e volta àquele lugar para balançar literalmente o coreto e a vida de Celie Junte a isso a empoderada Sofia que ganha corpo e voz com Danielle Brooks, uma personagem que rouba a cena sempre que aparece e que foi feita sob medida para Brooks. Ela é animada, mas também sabe se impor e não deita para grosserias e voz alta de homem nenhum, nem para brancos, sejam eles homens ou mulheres. Ao longo do filme ela paga o preço por ousar dizer não a gene branca.

Está formado aí o trio principal de mulheres dessa trama, as quais dão vida a uma verdadeira irmandade e sororidade negra que [re]injeta em Celie toda a esperança, amor, brilho nos olhos, gana de voltar a viver e conhecer um mundo além daquelas terras que só lhe trouxe dor e sofrimento. São três personagens poderosas e é lindo ver na tela esse poder feminino cujas performances e histórias particulares poderiam formar cada uma um filme. Destaco também uma não padronização de corpos negros que se costuma ter em Hollywood.

Mas, estamos falando de um musical, né, que, mesmo sendo conduzido de uma forma bem satisfatória, pomposa, com cenários e figurinos exuberantes e bem coreografado, todo crédito aqui para a coreógrafa Fatima Robinson, ainda assim traz números muitas vezes frios que às vezes parecem não acertar o passo entre cenas e músicas. Isso me deixou pensativa de como a gente aprendeu com a própria Hollywood a receber e assistir esse tipo de filme, que aborda temas sensíveis e traumáticos como estupro, incesto, violência doméstica e racismo, mas que não podem ser vistos também como uma celebração sobre alegria, reencontros, família e conexões. O sofrimento tem que ser esticado, a dor explorada e no musical, há essa quebra. Proposital? Talvez. Continuarei pensativa quanto a isso e de como o gênero do melodrama atua aqui trabalhando os conflitos pessoais.

As performances musicais individuais que simulam conversas e monólogos, como as de Celie e Shug, parece haver um acerto de tom, principalmente naquelas que usam de certa fantasia que se entrelaça com a realidade quando Celie se vê dentro de um vinil. Ficou fácil embarcar e se emocionar, pois Fantasia Barrino, entrega tudo com sua impressionante atuação e expressão corporal.


Por falar em Shug e Celie, não se pode deixar de mencionar a abordagem de um relacionamento sáfico negro entre as duas que, mesmo não sendo expandindo, deixa claro que existiu ali uma relação além de uma amizade mais forte e que isso foi usado a dar forma para o despertar de Celie. Ao contrário deste, os outros relacionamentos da trama servem como veículos para abordar misoginia, patriarcado, dinâmicas de poder abusivas e racismo. É aí que nós, enquanto público, entramos em contato com as opressões sistêmicas que mulheres afro americanas viveram entres as décadas de 1910 e 1940 e que são refletidas ainda hoje. A partir disso, devo salientar a questão do olhar e da perspectiva de quem está criando as imagens, lembro bell hooks quando fala sobre posições e pontos de vistas quando quem cria essas imagens é uma pessoa próxima àquilo que conta.

Gosto muito também da cena de virada de mesa de Celie e, mesa aqui não foi utilizada em vão, é literalmente em uma mesa que isso acontece, precisamente em um jantar de ação de graças em que Danielle Brooks, Sofia, calada e quieta após ser libertada da prisão, se mostra e se consolida como uma força audaciosa e desafiadora quando Celie enfrenta pela primeira vez Mister. Ela volta a ser a velha Sofia de sempre e coloca os homens,  em seus devidos lugares, mas antes, entrega muita emoção em um misto de riso que começa baixo e vai aumentando até culminar em um choro. Brooks passeia tão rapidamente por sentimentos que ficou impossível não se emocionar. Acho que foi a primeira vez no filme que ouvi o público da cabine dar boas risadas no filme para logo em seguida se calarem.

Esses dias se falou tanto de Bella Baxter, Barbie e suas jornadas de autoconhecimento, por que não inserir também nesse contexto a jornada de Celie, que precisou de suas iguais para se fortalecer e assim se reerguer. Há também um espaço no filme de Bazawule, para se discutir fé, religião, ancestralidade cultural, o crescimento e redenção dos homens, como o próprio Mister, seu filho Harpo e o pastor da cidade, pai de Shug. 

No fim de tudo, saímos com a impressão de ter visto uma historia poderosa, mas que não conseguiu alcançar todo o poder. E, mesmo havendo um descompasso aqui e ali, ainda consigo ver A Cor Púrpura com certo otimismo, talvez revisite em algum momento da minha vida. Para mim, ele funciona como resposta a vários filmes do tipo contados por pessoas brancas que tentam abordar a história negra e suas mazelas, mas só acabam entregando um reforço de estereótipos da população negra. O Ganês Bazawule, parece ter feito em sua versão o que Oscar Micheaux fez em 1920, transformando Entre Nossos Portões em uma reposta direta ao  O Nascimento de uma Nação de 1915.

A Cor Púrpura contra na produção com nomes que estavam na historia original de 1985, Oprah Winfrey, Quincy Jones, Steven Spielberg, e a própria Alice Walker. O filme estreia dia 08 de fevereiro nos cinemas nacionais.






Comentários

Postar um comentário

Form for Contact Page (Do not remove it)

Nome

E-mail *

Mensagem *

Instagram