As Pobres Criaturas do mundo de Lanthimos (2023)


O mito do Frankenstein nunca esteve tão vivo. Adaptado de diversas formas e em diversos gêneros e formatos, a criatura criada por Mary Shelley em 1818 tornou-se um clássico da literatura gótica e mais de 200 anos depois caiu na mão de Yorgos Lanthimos para adaptar a mitologia. Embora Pobres Criaturas não seja uma adaptação direta do livro de Shelley, aliás, o livro adaptado aqui por Lanthimos e Tony McNamara é do escritor escocês Alasdair Gray, cujo título homônimo ao filme foi lançado em 1992. O livro, conhecido por sua pegada engraçada abraçando um certo realismo fantástico vitoriano com temas como desigualdades sociais, relacionamentos, memórias e identidade, entra na história de Lanthimos agregando tudo isso ao fato da personagem estar descobrindo não só seu corpo, sua feminilidade e sexualidade, mas também um mundo digamos deveras peculiar, cheio de excentricidade, opulência e doses cavalares de bizarrices.

No eixo central de Pobres Criaturas temos deuses e monstros, ou precisamente Bella Baxter (Emma Stone) e Dr. Godwin (Willem Dafoe). Bella é uma mulher, tem corpo de mulher, mas age, anda e fala como uma criança, faz birra como criança e quebra coisas como criança. Ela mora na nada convencional mansão do Dr. a quem chama de Deus. De fato, Godwin não deixa de ser um, e Yorgos já de início nos apresenta suas criações híbridas como animais que são metade galinha e metade cabeça de porco ou um cachorro com cabeça de ganso e por aí. Adentramos não só na fantasia do Dr. “Deus”, como na fantasia fascinante monocromática de Lanthimos que passeia também pelos azuis, ocres, amarelos e vermelhos. Dafoe é Deus, mas poderia ser o monstro por ostentar em sua face cicatrizes bem marcadas lembrando Ben Grimm, conhecido como O Coisa, personagem da Marvel e, por ter uma saúde um tanto debilitada que precise de cuidados bem específicos e um certo maquinário criado por ele. Digo monstro no sentido de ostentar uma estética repulsiva e grotesca, resultado dos experimentos de seu próprio pai, no entanto God é apenas um cirurgião, um cientista e um professor que brinca com a vida e com a morte e faz experimentos loucos com cadáveres diante de um público de estudantes ávidos por seus ensinamentos. 

Dr. Godwin é um ser sensível e cuidadoso, vitima dos experimentos igualmente bizarros de seu pai, zela por Bella e, mesmo não sendo seu pai, mantém uma conexão íntima e paternal com a moça. Ele estuda minuciosamente todos os movimentos, falas e evolução física e mental de Bella, cuja história está envolta em mistério, mas Lanthimos não protela em nos contar sua origem. Bella, ou Victoria Blessington, ao tirar a própria vida ainda grávida se jogando de uma ponte, foi resgatada por Godwin com o corpo ainda quente, oportunidade perfeita para ele concluir seu experimento mais ousado, teve seu cérebro substituído pelo do seu bebê, se tornando seu próprio filho. É por isso que Bella age ainda como uma criança que está descobrindo o mundo. Precoce ou não, Bella também descobre o que é masturbação, prazer e, consequentemente, para ela, o que é felicidade. É daí que vem todo seu poder, controlar como, quando e a hora que quiser sua felicidade. Assim, ela se descobre livre. É quando entram na trama os personagens de Max McCandles (Ramy Youssef), estudante de medicina que se torna assistente de Deus e acaba se apaixonando por Bella, e Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) um advogado debochado, convencido, soberbo e muito rico. Max é autorizado e incentivado por God ai se casar com Bella, mas Bella quer conhecer os prazeres da carne e do mundo com Duncan e rejeita o noivo para desbravar a Europa em uma viagem reveladora e desafiadora. 

Nesse ponto do texto, queria me debruçar um pouco sobre a visão de Lanthimos ao mito monstruoso da criatura de Frankenstein que, de certa forma ganhou com o tempo o status de “ato feminista”, já que sua autora basicamente criou a ficção cientifica. Muito se tentou reimaginar de forma ousada as ideias de Shelley e, me atrevo a citar que alguns conseguiram, como por exemplo o Carne para Frankenstein (1973) que trouxe para o cerne a construção de um casal que se reproduziria dando início a uma nova espécie humana, tudo regado a muito sangue e tripa reforçando o cenário bizarro e grotesco do filme. Tem o Birth/Rebirth (2023) onde traz para o centro da discussão questões de maternidade, a cura da morte e o domínio sobre o próprio corpo, no entanto, a criatura criada pela cientista é uma criança e, para finalizar os exemplos, lembro do Frankenweenie (2012), uma animação carismática onde uma criança traz da volta seu inseparável cão que acaba virando a tal criatura renascida. Yorgos mescla muito bem comédias bizarras, humor ácido e fantasia em narrativas de estilo único que buscam explorar aspectos surreais e perturbadores sobre a condição humana e suas famílias disfuncionais, assim como também seu modo intrigante e curioso de guiar a câmera com suas lentes olho de peixe, como fez brilhantemente em Dente Canino (2009) e O Lagosta (2015), cria também em Pobres Criaturas sua própria mitologia desafiando expectativas ao combinar comédia, ficção científica, fantasia e horror a partir de da personagem de Stone, uma pessoa que quebra e desafia padrões ao mostrar uma reviravolta feminista alucinante sobre o que se espera e qual o papel de uma mulher em uma versão de Londres que mistura estética vitoriana e steampunk em um trabalho impecável do diretor de fotografia Robbie Ryan.

Bella fala de prazer sexual e faz sexo de forma espontânea sem temer julgamentos, nada que não já tenha sido abordado antes no cinema, mas como é um filme de Lanthimos, nada é convencional e situações cotidianas, em suas mãos, viram absurdas ao explorar o tema universal do amadurecimento e sexualidade feminina. É Ruffalo, enquanto companheiro de Bella e no ótimo papel de “sex machine”, que acaba entrando em declínio ao perceber que não tem mais o domínio de sua amada. Bella também é confrontada com as agonias e abismos sociais ao sair de seu mundinho protegido. Falar das atuações de Stone e Ruffalo é chover no molhado, eles estão incríveis nessa troca de tropos onde se vê geralmente mulheres sendo histéricas, ciumentas e grudentas ao perceber que estão perdendo a pessoa amada. Duncan já não satisfaz os desejos e anseios de Bella, ela então parte para outra aventura, dessa vez sozinha.

É quando chega em Paris, por circunstâncias curiosas, que Bella tem sua jornada mais intensa de amadurecimento. Cruzar o caminho e o empreendimento da Madame Swiney, personagem vivida por Kathryn Hunter, traduz esse trajeto de crescimento. É dela uma das melhores frases que ilustram bem o que digo: "Devemos experimentar tudo, não só o bom, mas a degradação, o horror, a tristeza. Isso nos torna inteiros. Então podemos conhecer o mundo, e quando conhecemos o mundo, o mundo é nosso". É quando me vem à mente as semelhanças entre a personagem de Bella e Hippolyta (Aunjanue Ellis) da série Lovecraft Country, especialmente no episódio 7 cujo título é "Eu Sou". São duas personagens que buscam incansavelmente respostas em busca de autoconhecimento e liberdade. A volta para dentro ao mesmo tempo em que viajam por mundos e universos.

Acompanhar o crescimento da protagonista é prazeroso, um papel complexo e corajoso que Emma abraça de uma forma franca e chega a seu ápice em um percurso que nos reserva boas surpresas e uma infinidade de paisagens imprevisíveis, excêntricas e, claro, perturbadoras, senão não seria o Lanthimos, um ótimo diretor para adaptar e ressignificar a criatura que de início não se adequa àquele mundo, mas que aprende rapidinho a entendê-lo e dominá-lo. Pobres Criaturas chega finalmente aos cinemas brasileiros em 01 de fevereiro e já arrastou um número considerável de indicações e prêmios. 


Poor Things
Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Tony McNamara
Duração: 2h21 min
Gêneros: Comédia, Fantasia, Ficção Cientifica, Horror
Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef, Christopher Abbott, etc




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