Assalto à 13a DP ou A Noite dos Fantasmas Armados.

Tem filmes que a gente volta sempre, quase por reflexo. Assalto à 13a DP é um desses pra mim. Basta começar aquela trilha eletrônica com o sintetizador seco, hipnótico, batendo como um coração ansioso e, pronto, já estou ali, dentro do prédio velho, cercado por sombras, pronto para passar uma (ou mais uma) noite com John Carpenter e companhia. É incrível como o filme continua reverberando, mesmo quase cinquenta anos depois. E olha que foi feito com o orçamento de um troco de lanche: Carpenter escreveu, dirigiu, montou e ainda compôs a trilha. Tudo nele tem a marca da precisão artesanal de quem sabia o que queria filmar e, principalmente, o que não precisava filmar.

Lançado em 1976, é um filme independente americano de ação e suspense que parece muito maior do que o dinheiro que o fez existir. Austin Stoker interpreta Ethan Bishop, um policial encarregado de cuidar de uma delegacia prestes a ser desativada. É um dia qualquer até que tudo vira pesadelo. Uma gangue chamada Street Thunder decide cercar o lugar, transformando a noite em um cerco infernal. Bishop acaba contando com ajudas improváveis de um prisioneiro condenado à morte, vivido por Darwin Joston, que se torna seu parceiro de sobrevivência.

Carpenter sempre disse que pensava no filme como um faroeste moderno, e é fácil ver isso. A delegacia é o forte, a gangue é o bando de foras da lei, e Bishop é o xerife solitário tentando manter o mínimo de ordem no caos. Só que o diretor vai além da simples homenagem. Ele pega a estrutura do western e injeta paranoia urbana. O resultado é uma história seca, direta e cheia de tensão, onde a cidade parece tão perigosa quanto qualquer deserto.

Entretanto, Assalto à 13a DP também carrega ecos do horror. Carpenter sempre admitiu a influência de A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero. E basta olhar a maneira como ele filma os membros da Street Thunder: não há rostos, não há motivações, não há humanidade. Eles andam em silêncio, com uma lentidão quase coreografada, e atacam como uma força sobrenatural, impessoal, sem explicação. São zumbis urbanos, ghouls modernos. O inimigo não é um grupo específico, é o medo coletivo, o colapso social, o caos que paira sobre tudo. E a própria rua onde fica a delegacia, prestes a fechar, parece uma cidade fantasma abandonada antes mesmo do cerco começar.

Essa desumanização ganha um impacto brutal logo no início, na cena do caminhão de sorvete. Uma garotinha sai pra comprar um picolé, e o que acontece em seguida é tão frio e repentino que parece um tapa. Carpenter filma o assassinato com uma crueldade quase mecânica, sem trilha, sem corte dramático, sem aviso. O tiro, o corpo, o silêncio. É uma das cenas mais chocantes da carreira dele, e não por mostrar sangue, mas por mostrar o absurdo da violência. A reação do pai é o que mais fica. Ele entra em choque, sem conseguir dizer uma palavra, só vaga até a delegacia, em busca de ajuda, carregando a dor mais devastadora possível e continua sem dizer uma palavra noite adentro.

A partir daí, o filme se fecha. O prédio vira prisão, santuário e campo de guerra ao mesmo tempo. Bishop, segura o centro da ação com uma calma impressionante. Há um momento em que ele aceita um café e a moça pergunta se ele quer preto, e ele responde “há mais de 30 anos”. É uma piada pequena, mas com o peso de quem sabe onde está pisando. No meio da tensão, é quase um respiro, um lembrete de que o personagem, e o ator, têm humor, têm presença, têm voz.

Laurie Zimmer também merece um espaço aqui, pois a presença dela como Leigh é daquelas que marcam e impressionam todas as vezes que reviso o filme. Carpenter não dá grandes discursos a ela, mas dá algo melhor: postura e atitude Leigh enfrenta o caos com uma calma quase irritante, sempre precisa, sempre atenta. Ela não é a secretária assustada do clichê como a personagem de Nancy Loomis, nem um alívio cômico. É alguém que entende o tamanho da encrenca e decide agir, simples assim. Gosto de como Zimmer constrói essa força silenciosa, que combina com o jeito econômico do filme. No meio das balas e do desespero, ela parece ser a única que não perde o eixo, e isso dá ao cerco um tipo estranho de equilíbrio.

A câmera de Carpenter se move devagar, os enquadramentos são precisos, as sombras parecem respirar. Ele transforma a falta de recursos em estilo. Cada plano serve à atmosfera, e o som é parte fundamental da narrativa. Aquela batida repetitiva da trilha não está ali só para acompanhar, ela dita o ritmo do medo. O tempo todo parece que algo vai acontecer, e às vezes não acontece, o que é ainda pior.

É curioso perceber como Assalto à 13a DP diz tanto sobre a América dos anos 70, mesmo sem discursar. A cidade é o inimigo, o sistema está falido, a violência não tem rosto. E, dentro da delegacia, o que resta é um grupo improvável tentando sobreviver. Policiais, criminosos, secretárias, todos no mesmo barco. O que importa não é a lei, mas a solidariedade, o instinto de manter-se vivo. É um filme sobre resistência, sobre o colapso e sobre a estranha humanidade que surge quando tudo o resto desmorona.

E nessa última revisão achei curioso como esse filme conversa, à sua maneira, com O Agente Secreto do Kleber Mendonça Filho, cuja história se passa em 1977. Os filmes não poderiam nascer de contextos mais diferentes, mas ambos lidam com esse sentimento de cerco permanente. Em Carpenter, o perigo é direto, armado e batendo à porta, já em Kleber, ele vem de um sistema, pelas frestas da vida cotidiana, nos corredores burocráticos, nos ruídos que parecem vigiar. Os dois constroem essa sensação de que algo maior está sempre prestes a fechar o círculo em torno dos personagens. O Brasil paranoico de O Agente Secreto e a delegacia abandonada de Carpenter acabam se encontrando na mesma angústia: a cidade observando, esperando, pronta para engolir quem vacilar.

Rever, é lembrar que Carpenter nunca precisou de pirotecnia para criar tensão. Ele só precisa de um prédio, algumas armas e uma trilha de sintetizador. É o tipo de cinema que prova que estilo e substância podem andar de mãos dadas e que às vezes, o silêncio entre os tiros é o que mais diz. No fim, o filme continua sendo o mesmo prazer: o som do sintetizador, o escuro do corredor, o cerco que se fecha e a sensação de que a noite vai durar pra sempre.



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