Terra Tranquila (1985), de Geoff Murphy, é daqueles filmes que chegam de mansinho, sem alarde, e vão se expandindo dentro da cabeça de quem assiste até se tornarem quase um mito pessoal. É, antes de tudo, um filme sobre solidão, mas não apenas a solidão literal de Zac Hobson (Bruno Lawrence), talvez o último homem na Terra, mas aquela solidão que vem do vazio de sentido, do desaparecimento de todas as referências que sustentam a vida em comunidade. Inevitável perceber que ele carrega ecos de outras obras como Mortos que Matam (1964), uma das adaptações baseada no romance Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson, que já estabelecia o arquétipo do homem que vaga sozinho em meio ao nada, e também da série clássica Além da Imaginação, onde frequentemente a ficção científica era usada para tensionar a fragilidade da realidade humana. A solidão e a ruptura com o mundo social são dois motores recorrentes do gênero, funcionando quase como experimentos de laboratório para testar os limites do humano, como aponta Adam Roberts no livro A Verdadeira Historia da Ficção Cientifica.
Mas, o filme de Murphy não se limita a repetir tal fórmula, ele começa como se fosse nos dar mais uma variação dessa fantasia do “único sobrevivente”, mas logo quebra essa expectativa. A jornada de Zac, primeiro embriagado pelo poder absoluto de ter o mundo para si e brincar de deus, depois mergulhado em crise e desespero, não se resolve na autossuficiência. E aí vem o ponto crucial: Zac não está sozinho. A aparição de Joanne (Alison Routledge) e, depois, de Api (Pete Smith), muda tudo. A promessa de um embate clássico do tipo quem domina, quem se impõe, quem toma para si o papel de herdeiro da Terra é logo desmontada. O que poderia ser uma luta de egos, ou até um triângulo amoroso marcado por possessividade, se transforma em algo mais raro e subversivo: uma decisão de existir em conjunto, de sobreviver como grupo, e não como inimigos ou divindades solitárias.
Esse deslocamento é brilhante porque desafia tanto as convenções narrativas quanto as expectativas do espectador. Estamos habituados, dentro e fora da ficção científica, a histórias que isolam o “último homem” como figura de poder, ou que reduzem a convivência a rivalidades. Murphy vai na contramão e insiste na fragilidade do acordo humano, na ideia de que talvez seja justamente a cooperação, e não a disputa, o que define nossa sobrevivência. Nesse sentido, Terra Tranquila antecipa linhas de pensamento que outros filmes pós-apocalípticos retomam. De Extermínio (2002), onde a comunidade importa mais que a força bruta, até Filhos da Esperança (2006), de Alfonso Cuarón, que também transforma o colapso do mundo em um exercício de empatia e resistência.
E então vem o final. Ah, o final! Aquele último plano quase cósmico, em que Zac parece atravessar para outra dimensão. Mais uma vez, o filme nos coloca diante de um deslocamento narrativo, principalmente em não nos entrega explicações científicas seguras, ou que não resolve o enigma do “Efeito” que teria dizimado a humanidade. Em vez disso, abre o campo do desconhecido, como se dissesse: todo o resto foi apenas ensaio, e agora o mistério começa de verdade. Esse gesto de deixar o espectador no desconforto, sem as respostas que tanto busca, é justamente o que transforma esse longa numa obra maior, uma ponte entre a ficção científica clássica, que buscava diagnósticos e previsões, e a mais contemporânea, que prefere se embrenhar no indizível, no metafísico.
Por fim, talvez o que Murphy nos entrega seja menos um filme sobre o último homem e mais um filme sobre a impossibilidade de ser o último. A humanidade, insiste ele, é um exercício de comunidade e, até no fim do mundo, essa necessidade resiste.
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