GOAT: Sem Coragem Nem Glória

Justin Tipping quis fazer de GOAT um grande comentário sobre sonhos, sacrifícios e o peso que a sociedade coloca sobre os corpos negros. O título já traz um duplo sentido: no futebol americano, chamar alguém de “GOAT” significa “Greatest of All Time”, o melhor de todos os tempos, rótulo reservado a lendas absolutas. É justamente esse o sonho de Cameron “Cam” Cade (Tyriq Withers), que desde criança cresceu vendo Isaiah White (Marlon Wayans), astro consagrado do esporte, como o exemplo máximo de força e resistência. Para seu pai, barulhento e insistente, o caminho era simples: homens de verdade se sacrificam em busca da glória. Anos depois, prestes a se tornar o novo fenômeno do esporte, Cam vê tudo ruir após uma lesão cerebral advinda de uma misteriosa agressão, que ameaça encurtar sua trajetória antes mesmo do início. Nesse momento, Isaiah, já um veterano de oito títulos, o chama para uma semana de treinamento em sua casa. A partir daí o filme se organiza em seis capítulos, cada um representando um dia dessa rotina, como se fosse um ritual de passagem entre mestre e discípulo.

Só que a boa premissa se perde rápido. O formato dividido em capítulos poderia criar uma cadência quase ritualística, uma construção de tensão diária. Mas, o que se vê é um desfile de métodos de treinamento suspeitos e carregados de simbolismo óbvio, como se cada exercício fosse menos sobre o corpo de Cam e mais sobre a obsessão do diretor em sobrecarregar a narrativa de metáforas. A proposta de criticar a exploração dos corpos negros no esporte é válida, aliás, necessária, mas aqui fica afogada em um mar de pretensão. Outros filmes souberam trabalhar essa discussão com muito mais eficácia, inclusive do próprio produtor de GOAT, Jordan Peele. Em Corra!, por exemplo, Peele, transformou a apropriação do corpo negro em horror visceral e direto, sem medo da contundência. Já em Não, Não Olhe, ele também fez crítica semelhante à exploração, só que da mídia sobe personas negras e sem abrir mão da clareza narrativa. Até a série Lovecraft Country, no episódio Holy Ghost, mostrou de maneira inquietante a relação entre ciência branca supremacista e o uso violento dos corpos negros em experimentos. Já em GOAT, cada gesto parece implorar para ser lido como “profundo”, e é justamente por isso que tudo soa superficial.

A insistência em flertar com o body horror, por exemplo, beira o constrangedor. Há momentos em que a dor física e os limites corporais poderiam ser explorados de forma genuinamente perturbadora, mas o filme hesita, recua, prefere sugerir em vez de assumir a brutalidade. Essa covardia deixa as cenas mais esquisitas do que assustadoras. O roteiro até dá pistas de uma possível troca de corpos, Isaiah absorvendo a juventude e a força de Cam, algo que poderia trazer uma camada interessante caso fosse abraçado como horror de fato. No entanto, o longa de Tipping, não tem coragem de se entregar a essa direção e, convenhamos, não seria exatamente novo: a ideia do mais velho se alimentar da força do mais jovem já foi explorada em outras obras recentes, mas ainda assim poderia render algo consistente. Aqui, fica apenas como sugestão mal-acabada.

Ainda assim, existe uma escolha visual que merece menção: em momentos de maior violência ou esforço físico, os corpos aparecem como se vistos em raio-X, numa sobreposição quase clínica que cria uma sensação de fratura iminente. É um detalhe inventivo que poderia abrir espaço para uma identidade estética mais ousada, mas que acaba isolado no meio da indecisão do filme.

O que realmente sustenta GOAT, no entanto, é Marlon Wayans. Conhecido pela comédia, ele surge aqui em um registro completamente diferente e entrega uma performance de peso. Seu Isaiah White é magnético. Cada silêncio, cada olhar, cada vibração traz mais camadas do que qualquer metáfora empilhada pelo diretor. Wayans foge da caricatura, constrói um personagem denso, cheio de contradições, e dá uma dimensão dramática que o filme em si não consegue acompanhar. É quase injusto vê-lo brilhar num projeto que parece não estar à sua altura. Tyriq Withers, no papel de Cam, até tenta acompanhar, mas sua rigidez só reforça o contraste com a intensidade de Wayans.

Por fim, GOAT é um filme que joga boas ideias na mesa e depois as abandona, preferindo se mostrar “profundo” em vez de ser consistente. A primeira metade até teve minha atenção, construindo uma atmosfera que prometia mergulhar em algo mais denso e inquietante. Mas, a segunda, que deveria ser o clímax, se torna maçante e apressada, como se o filme tivesse perdido o fôlego justamente onde precisava de mais intensidade. A crítica à exploração dos corpos negros até está ali, mas diluída em símbolos que mais atrapalham do que reforçam. Como já disse, o flerte com o horror corporal é covarde, as metáforas esportivas são batidas e a divisão em capítulos acaba virando truque de estilo. Restam lampejos visuais interessantes e uma atuação impressionante de Marlon Wayans, mas tudo isso acaba soterrado por uma direção vaidosa. E aí, o que tinha tudo para ser um estudo contundente sobre legado, sacrifício e a violência em torno do corpo negro no esporte, vira só mais um exercício de vaidade que se acha profundo, mas esquece do básico: coragem, ritmo e emoção.

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