Quando tudo desmorona, a luta continua. Viva la revolución!
Existe algo particular em ver um filme de Paul Thomas Anderson na tela grande. Há diretores que parecem nascer para a tela grande e ele é um deles. Sua obra nunca se acomoda, está sempre procurando algo além, mesmo quando se arrisca a abraçar o excesso. Em Uma Batalha Após a Outra essa vocação aparece de forma ainda mais intensa. O filme se inscreve na linhagem dos épicos políticos e sentimentais, mas assume a forma de um espetáculo desajustado, em que nada parece caber exatamente em seu lugar. Essa desorganização, que em outros cineastas poderia soar como falha, Anderson transforma em pulsação.
A sinopse pode soar simples, mas carrega em si as chaves do filme. Leonardo DiCaprio interpreta “Ghetto” Pat Calhoun, também conhecido como Bob Ferguson, um ex-membro fracassado e especialista em dispositivos explosivos de um grupo revolucionário chamado French 75, que precisa recorrer a antigos aliados para resgatar a própria filha. Chase Infiniti, atriz de uma força e presença incríveis, vive Willa Ferguson, ou Charlene Calhoun, filha de Pat e Perfidia, enquanto Teyana Taylor interpreta Perfidia Beverly Hills, membro do grupo, mãe de Willa e parceira de Bob. Teyana, é um dos maiores destaques do elenco, numa performance de força e magnetismo que carrega muito do filme em suas passagens mais delicadas. É com ela que Anderson parece ter encontrado uma chave estética rara, um jeito de filmar corpos e rostos negros sem reduzi-los a símbolos, mas sim como presenças cheias de espessura e contradição.
A rede de personagens se completa com Sean Penn como o Coronel Steven J. Lockjaw, oficial militar tenso, supremacista que adora fetichizar e se relacionar com mulheres negras. Acaba sendo o principal inimigo e perseguidor do French 75. Benicio del Toro como Sergio St. Carlos, sensei de caratê de Willa e líder da comunidade indocumentada em Baktan Cross, e Regina Hall como Deandra, também integrante do French 75. A jornada não é apenas sobre reencontro e violência, mas sobre como as ruínas do passado, ideológicas, afetivas, pessoais, nunca desaparecem por completo. Ao lado desses personagens, Anderson costura política, romance e adrenalina, criando uma narrativa em que o caos é também experiência sensorial.
Nesse sentido, fiquei pensando em Eddington, outro filme político que criou grandes expectativas com o público. O que Ari Aster propõe ali é ambicioso, um faroeste contemporâneo atravessado pela pandemia que pretende funcionar como sátira e diagnóstico histórico ao mesmo tempo. O grotesco e o tragicômico poderiam ser suas armas, mas acabam se diluindo em ruído. O filme se transforma em um delírio que se perde em si mesmo, como uma discussão de bar cheia de teorias que nunca chega a lugar algum. É um projeto de fôlego, mas falta clareza, falta corte.
Anderson, ao contrário, encontra no caos a sua mira. Uma Batalha Após a Outra é exagerado, frenético, mas raramente vazio. Cada curva da narrativa joga o espectador para outro lugar e esse descontrole vira método. Há momentos em que o filme alcança um estado de absoluto cinema, como na sequência final de perseguição na estrada, em que a câmera e os corpos em movimento parecem ultrapassar o limite da adrenalina. Senti vertigem, quase enjoo, como se estivesse dentro de um dos carros, e saí da sala com a certeza de ter visto uma das grandes sequências do ano.
Esse tipo de experiência só se compara à sensação que tive em Pecadores, de Ryan Coogler, naquela cena da dança que atravessa o tempo. Ambas as sequências, cada qual à sua maneira, criam algo que vai além do domínio narrativo e por isso mesmo ficam grudadas na cabeça. São momentos raros, daqueles que justificam a obsessão por voltar ao cinema, mesmo quando tudo ao redor parece nos empurrar para a distração.
Outro aspecto que não consigo tirar da cabeça é a relação entre personagens e as redes de apoio que se formam em meio ao colapso. O protagonista vivido por DiCaprio, agora também na posição de pai, depende de alianças instáveis, de laços de afeto e sobrevivência que surgem quase às escondidas. Há nisso algo que me fez lembrar O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, em que a resistência só é possível porque pessoas e vínculos se movem nos “subterrâneos”, sustentando uma travessia. Essa tensão entre ruína e sobrevivência, entre ideologia e intimidade, é o que dá espessura ao filme de Anderson.
É por isso que a comparação com Eddington se torna inevitável. Ambos tentam filmar uma América despedaçada e febril, mas enquanto Aster tropeça na própria ambição, Anderson ergue clareza justamente a partir do excesso. Seu filme é uma barulheira imensa, mas que no fim revela a fratura exposta do presente. O que poderia ser só mais um épico confuso se transforma em uma obra que encontra no excesso e na vertigem a sua força.
Talvez seja esse o ponto central. Não basta diagnosticar um tempo em colapso, é preciso filmar como quem sente o sangue correndo. Nesse gesto, Uma Batalha Após a Outra aparece não apenas como um dos filmes mais ousados do ano, mas também como um dos mais certeiros, um daqueles que justificam a permanência de Anderson como um dos grandes cineastas de sua geração.
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