Territórios de Não-Pertencimento em Suçuarana e Dormir de Olhos Abertos

O cinema brasileiro recente parece cada vez mais interessado em rastrear silêncios, fissuras e deslocamentos, em vez de oferecer respostas ou narrativas fechadas. Nesse terreno, Suçuarana, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges, e Dormir de Olhos Abertos, de Nele Wohlatz, se encontram como filmes que lidam com a sensação de estrangeirismo, seja diante da própria terra, seja diante da terra do outro. Ambos atravessam espaços devastados ou inóspitos, e neles o corpo se torna também território, ora em busca, ora em fuga.

Em Suçuarana, Sinara Teles interpreta Dora, personagem errante que percorre um sertão devastado em busca da terra chamada Suçuarana. A terra prometida que ela e a mãe idealizavam se mostra cada vez mais distante, soterrada pela mineração, pela destruição e por acidentes que parecem inevitáveis. É como se o território rejeitasse o corpo, devolvendo a cada tentativa de fixação apenas pó e desolação. Dora encontra Ernesto (Carlos Francisco) algumas vezes nesse caminhar, suas interações são breves, mas carregam o peso da companhia temporária e da solidão compartilhada.

O filme constrói uma paisagem entre mito e fantasma, em que o caminhar é sempre adiamento e a promessa de chegada se dissolve. Nesse percurso, surge Encrenca, o cachorro que a acompanha, figura ambígua, que não é apenas um animal de companhia, mas um sinal de que há algo de outro mundo infiltrado naquela travessia. Sua presença carrega tanto a ideia de guia quanto a de presságio, como se Dora fosse levada por uma força maior, por algo que ela não controla nem compreende totalmente. Esse elemento de estranhamento abre o filme para uma dimensão mais simbólica, em que a busca pela terra perdida se mistura ao contato com o inominável.

Já em Dormir de Olhos Abertos, a errância assume outro tom. Distantes de suas terras natais e alheios à cultura recifense, Xiao Xin (Chen Xiao Xin), Fu Ang (Wang Shin-Hong) e Kim (Liao Kai Ro) percorrem Recife em gestos que subvertem a lógica do turista. Não acumulam experiências, não fotografam monumentos, não procuram marcos de passagem. Apenas caminham e trabalham. O filme se constrói em narrativas quebradas e múltiplos protagonistas, reforçando a fragmentação e a impossibilidade de uma linearidade confortável. Os personagens se tornam protagonistas à medida que o ponto de vista muda, mostrando a cidade como um espaço fluido e desordenado.

A diretora Nele Wohlatz parte de sua própria experiência de viver entre dois países sem se sentir plenamente parte de nenhum, e isso se traduz na forma do filme. Recife nunca é estável, sempre escorregadia, como se os personagens estivessem dentro e fora ao mesmo tempo. Há uma ironia cruel nesse Recife que o filme mostra: os chineses vivem em um dos prédios mais caros da cidade, mas nem por isso deixam de sofrer pequenas violências, olhares enviesados, comentários sutis, gestos de exclusão. Fu Ang, em particular, manifesta um descontentamento constante ao sentir que nunca é visto de verdade, que as pessoas o confundem com qualquer outro asiático, e que sua identidade se perde diante de olhares que não querem reconhecê-lo. Ele percebe até seu próprio corpo e cheiro mudando à medida que se mantém em um lugar que não é seu, como se o próprio espaço transformasse sua presença em algo estranho e deslocado de si mesmo. E o curioso é que essas violências e incompreensões partem de pessoas que também carregam no corpo suas próprias microviolências cotidianas. Wohlatz revela, assim, um Recife atravessado por múltiplas tensões, onde ninguém parece pertencer totalmente ao espaço que habita.

E aí entra outro detalhe que torna a experiência ainda mais física: o mormaço recifense. O calor não é apenas pano de fundo, mas quase um personagem. Aquele calor pesado que cola na pele, que embaraça os sentidos, que cansa o corpo. Esse clima sufocante dá forma à narrativa, deixando cada gesto mais arrastado, cada silêncio mais denso. É um pouco como em O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, onde o calor já era metáfora de tensões latentes. Não à toa, Dormir de Olhos Abertos é produzido por Kleber e Emilie Lesclaux, reforçando essa continuidade de olhar para a cidade como um organismo estranho, cheio de pressões e fraturas internas.

Assistir aos dois filmes juntos é perceber que, embora vindos de lugares diferentes, como a interioridade e a cidade litorânea, eles partilham de um mesmo impulso: explorar a sensação de não-pertencimento. Como refletem estudos sobre literatura afro-brasileira, autores negros abordam o pertencimento como construção complexa e muitas vezes tensionada, em que afirmar identidade é também resistir à invisibilidade e à exclusão. 

Dormir de Olhos Abertos traz essa discussão para algo que raramente vemos no cinema brasileiro: a diáspora asiática, seus deslocamentos, microviolências e tensões cotidianas. Nesse contexto, vemos personagens que tentam, resistem ou apenas seguem adiante nesse intervalo entre não pertencer e se afirmar, seja Dora caminhando pelo sertão devastado de Suçuarana, seja Fu Ang, Xiao Xin e Kim perambulando pelas ruas sufocantes de Recife.

São duas obras que convidam o espectador a não esperar resolução, mas a aceitar o incômodo, a suspensão, e o fato de que talvez nunca sejamos parte plena do espaço que ocupamos. A vida, seja no sertão ou numa cidade tropical, é sempre atravessada por esse não-lugar, ou pela sensação de estranheza que nunca passa.




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