O Agente Secreto e os Fantasmas que Não Passam

Assistir O Agente Secreto no São Luiz, o templo da sétima arte recifense, é uma experiência carregada de magia. Não é qualquer sala, é um espaço que parece guardar ecos de tantas histórias vistas e vividas ali, como se o próprio prédio fosse cúmplice do cinema de Kleber Mendonça Filho. Ver o filme nesse lugar ampliou a sensação de atravessar a cortina do tempo, de um mergulhar na década de 70 recriada na tela e, ao mesmo tempo, sentir o presente pulsando, desconfortável, dentro daquelas imagens. Saí com a impressão de que Kleber filma sempre a partir dessa encruzilhada: entre passado e agora, entre o que é lenda e o que é trauma histórico.

É notório que cada vez mais Kleber se reafirma como um grande diretor, seguro e absolutamente conhecedor. Ao contrário do que alguns possam dizer sobre pecar no ritmo, seu mais recente filme é eletrizante do início ao fim: cenas, enquadramentos e pausas funcionam como parte de uma cama narrativa construída com precisão cirúrgica. Ele sabe exatamente quando soltar o medo, o riso, quando sugerir tensão e quando permitir que o silêncio fale mais alto. Kleber conduz a audiência sem que pareça forçado, criando expectativa e inquietação de maneira natural, inteligente e envolvente.

A história acompanha Marcelo, vivido por Wagner Moura, professor e pesquisador de tecnologia que, em 1977, tenta deixar para trás um passado violento e enigmático. Sua escolha é fugir de São Paulo e recomeçar em Recife, onde vai em busca do filho, justamente durante a semana de carnaval. O que deveria ser refúgio, aos poucos, se transforma em armadilha, e o clima de festa dá lugar a uma atmosfera opressiva, quase insuportável. Marcelo carrega a marca de um país em convulsão, onde o medo se infiltra em cada esquina e nenhuma tentativa de esquecer é suficiente para escapar. Ao mesmo tempo, uma rede de apoio se revela: amigos, vizinhos e relações inesperadas surgem como pequenas frestas de alívio e humanidade, mostrando que mesmo em tempos de opressão há solidariedade e resistência silenciosa. Essas conexões sutis permitem que ele navegue pelo caos da cidade enquanto passado e presente se entrelaçam, reforçando que, mesmo sob pressão constante, a empatia e os laços humanos continuam sendo uma força capaz de resistir à manipulação que o cerca.

O filme se passa em plena ditadura militar, num Brasil marcado pela censura, repressão e medo espalhado como política de Estado. É impossível assistir ao longa sem sentir como esse peso histórico ainda ecoa no presente. Mesmo depois da redemocratização, muitos responsáveis por aquele regime jamais foram julgados, morreram livres preservando honras e privilégios. Ao olhar para hoje, é perturbador constatar como ainda convivemos com ecos desse passado. Militares e admiradores da ditadura voltaram a flertar com o poder, até o ponto de uma tentativa de golpe, cujos responsáveis foram recentemente condenados. O filme ressoa justamente nesse intervalo incômodo entre memória e aquilo que insiste em retornar como ameaça.

Entre as muitas camadas do filme, uma me atravessou de maneira particularmente pessoal. O filho de Marcelo, ainda criança, é obcecado pelo filme de Spielberg, Tubarão, mas só de ver o cartaz já tem pesadelos. Ele o redesenha sem parar, como se tentasse exorcizar o medo pela repetição da imagem. Vi ali um reflexo direto da minha infância, pois por volta dos seis, sete anos, era muito afim de assistir ao filme, mas sem poder, meio proibida pelos meus pais. Até que, um dia, escondido, esperei que dormissem, liguei a televisão na escuridão e finalmente encarei o tubarão. O resto é uma história de traumas (já superados), de noites dormidas com a luz acesa e de perceber, cedo demais, como o cinema pode ser ao mesmo tempo desejo e terror. Kleber parece conhecer bem essa pulsação infantil que transita entre medo e atração são inseparáveis.

A reconstrução de época não funciona apenas como peça de museu, mas como atmosfera viva onde cada detalhe, carros, prédios, ruas, figurinos e textura das paredes contribui para o peso daquele Brasil de ditadura, feito de silêncios. As cores têm papel fundamental: vermelhos surgem como feridas abertas, marrons e verdes prendem os personagens numa opressão quase palpável, e há momentos em que a paleta inteira parece conspirar para criar um estado de alerta constante. É um cinema em que a cor é política, onde o quadro respira a tensão do invisível, mas também a vibração de um Recife em plena festa de momo.

Nesse espaço, Kleber insere sua cinefilia sem esconder as referências. A paranoia urbana de John Carpenter, a sombra gótica e o gore de Mario Bava e o desconforto psicológico de Brian De Palma, com seu split screen e sobreposições de ação, ecoam na narrativa, mas não como citações de vitrine. São formas de lembrar que o terror nunca foi apenas entretenimento, mas também comentário político. Carpenter filmava o medo americano em plena Guerra Fria; Kleber filma a claustrofobia brasileira em tempos de regime militar. Mesmo não sendo um filme propriamente de horror, ele está lá. 

O elenco sustenta essa densidade com força. Wagner Moura entrega uma interpretação contida, mas carregada de tensão, como alguém que nunca está à vontade, mesmo em silêncio. Carlos Francisco e Maria Fernanda Cândido expandem a textura dramática, enquanto Hermila Guedes e Udo Kier aparecem como presenças que oscilam entre o real e o perturbador, acentuando a estranheza do filme. Mas é Alice Carvalho quem surpreende: mesmo em uma participação curta, deixa uma marca vibrante, arrancando aplausos entusiasmados na sessão. A maneira como Kleber a filma amplia sua energia, como se sua presença iluminasse uma fresta de vida em meio ao sufocamento.

E aí quando falo que o horror está em O Agente Secreto, falo também da presença da Perna Cabeluda. A lenda urbana, que poderia ser apenas folclore popular, assume aqui uma função de metáfora poderosa. Naquele contexto de ditadura, era conveniente que a mídia criasse ou inflasse o pânico em torno de um monstro noturno, desviando a atenção dos horrores concretos que se passavam nas delegacias e quartéis. O terror inventado servia para ocultar o terror real. Kleber nos lembra que essa lógica não acabou. Hoje, ainda vemos inimigos fabricados, pânicos morais instantâneos e distrações midiáticas que afastam a discussão das feridas sociais mais profundas. A Perna Cabeluda continua caminhando e chutando bundas por aí , só mudou de forma.

Não é à toa que O Agente Secreto conquistou o Prêmio Especial do Júri em Cannes. Apesar de profundamente enraizado na experiência brasileira, o filme fala de algo universal, como o medo se infiltra no cotidiano quando Estado e mídia se unem para impor silêncio. É um cinema que não precisa gritar para ser político, basta acender uma vela no escuro e deixar que a chama revele o que sempre esteve ali. Kleber filma um Brasil que insiste em nos perseguir, um país de ditaduras, lendas, silêncios e espectros. E filma também um país que, apesar dos pesares, ainda encontra nos cantos mais diversos, uma dona Sebastiana (Tania Maria) sempre disposta a deixar o ambiente mais leve. 



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