Selma Baccar e Rania Stephan: Dois Tempos, Uma Mesma Luta

Ontem, quinta-feira, segundo dia da Mostra de Cinema Árabe Feminino, a programação ofereceu uma sessão que estava bem curiosa. Dessas que não se repetem com facilidade e que, justamente por isso, deixam a gente pensando por algumas horas. Um dos fatores que mais me chamou atenção para esse dia foi o fato de passarem um filme da década de 70, período pelo qual, vocês já devem desconfiar, tenho cada vez mais curiosidade e afeição. É uma época que, fora do escopo ocidental mais conhecido, revela cinemas que dialogam com as mudanças políticas, sociais e culturais de forma vibrante e nada óbvia. Conhecer obras desse período, especialmente vindas de contextos árabes e africanos, é como abrir uma porta para narrativas e formas de filmar que escapam dos moldes que a gente já se acostumou a ver.

Na mesma noite, dois filmes separados por décadas, países e formatos dividiram a tela: Fatma 75, da tunisiana Selma Baccar, e Os Três Desaparecimentos de Soad Hosni, da libanesa Rania Stephan. À primeira vista, pode parecer apenas uma boa coincidência de programação, mas, vendo os dois lado a lado, é impossível não notar como se completam: um como registro de uma luta em construção, outro como elegia a uma era perdida.

Fatma 75, de 1975, é mais que um marco no cinema tunisiano: é o primeiro filme de não-ficção dirigido por uma mulher no país e, ainda por cima, carregando a ousadia de revisitar a história do papel feminino na Tunísia, de 1930 até aquele momento, com um olhar profundamente político. A protagonista, Fatma, carrega um nome simbólico, aquele usado pelos colonizadores franceses para se referirem genericamente às mulheres árabes, um nome que, no contexto colonial, vinha carregado de exotização e apagamento da individualidade. Selma Baccar levou seu interesse pelo cinema, amadurecido em Paris, de volta à sua própria terra, construindo uma filmografia que faz da história, da política e do gênero um único território de debate.

Há uma cena que me ficou presa na memória quando uma mulher casada tenta tirar o passaporte, o agente certifica um a um todos os documentos, mas falta um: a autorização assinada do marido permitindo que ela tire seu passaporte. É um momento que, além de denunciar o controle estatal sobre o corpo e a liberdade das mulheres, ecoa estranhamente em questões atuais como o cenário que vem sendo pintado em alguns estados norte-americanos, onde se discute restringir o voto ou a circulação das mulheres sob pretextos “morais” ou “familiares”, devolvendo ao homem/marido a função de “intermediário” da cidadania feminina. O tempo e o espaço mudam, mas a lógica patriarcal que condiciona a autonomia da mulher persiste, apenas trocando de roupagem.

Ao longo de Fatma 75, Baccar também desmonta o mito da “mulher árabe tunisiana” criado pelo colonizador francês como a figura passiva, misteriosa e submissa, moldada para caber no imaginário orientalista europeu. O filme recusa esse enquadramento e mostra mulheres reais, históricas, politicamente ativas abrindo espaço para que a própria imagem da mulher tunisiana seja contada de dentro, sem filtro ou tutela estrangeira. É nessa recusa, tanto estética quanto política, que o filme segue vivo e necessário quase cinquenta anos depois.

Se Baccar nos fala da construção de uma consciência feminina e social, Rania Stephan, em Os Três Desaparecimentos de Soad Hosni (2011), nos entrega uma desconstrução. Ou melhor, uma investigação afetiva. Hosni, estrela do cinema egípcio dos anos 1960 aos 90, foi para milhões a personificação da mulher árabe moderna, complexa e cheia de paradoxos. Stephan transforma imagens de arquivo em narrativa poética e fragmentada, entremeando memória e investigação, para falar não apenas da atriz, mas de um Egito em transformação, de uma era de ouro para um cenário em que a violência e a opressão contra a mulher se tornaram dominantes. Muito interessante e desafiador. Inclusive, Rania Stephan dará uma masterclass online chamada “O Caminho para o Arquivo” onde falará sobre o processo de criação deste filme e sobre como arquivos de memória e a montagem cinematográfica podem reconstruir narrativas. Recomendo dar uma olhada nas redes da Mostra para saber mais informações. Vai ser icônico! 

Ver esses dois filmes no mesmo dia foi como abrir um livro em dois capítulos distantes, mas interligados. Selma Baccar filma o que ainda se luta para conquistar; Rania Stephan filma o que se perdeu no caminho. Juntas, elas oferecem um panorama sobre a mulher árabe no cinema, não como estereótipo, mas como presença pulsante, contraditória e sempre política. É um encontro raro que mostra como, apesar das distâncias geográficas e temporais, essas histórias conversam entre si e continuam dizendo muito sobre o presente.

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Se curte meu trabalho, que tal me pagar um cafezinho? Além de aquecer o coração, ajuda a manter a criatividade cafeinada e eu fico agradecida até a última gota! 


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