Ontem aqui no Recife tivemos pela primeira vez uma edição da Mostra de Cinema Arabe Feminino, que já está na sua 5a edição e terá presença marcada também no Rio de Janeiro, Duque de Caxias e em Niterói. A curadoria foi realizada pelas brasileiras Analu Bambirra e Carol Almeida e pela egípcia Alia Ayman com intuito de mostrar filmes com linguagens artísticas e narrativas não-hegemônicas.
Ontem, na sessão de abertura Eu vi Sudão, Lembre de Nós (2024), de Hind Meddeb e foi uma daquelas sessões que a gente sabe que não se repetem fácil. Passou com exclusividade aqui no Recife e isso por si só já carrega um peso, pois não é todo dia que temos contato tão direto com um cinema que nos tira da zona de conforto e nos coloca diante de histórias que raramente ocupam o centro da conversa. Ainda mais quando se trata do Sudão, país que, para muitos, existe só como um nome perdido no mapa, mas que carrega séculos de cicatrizes da exploração colonizadora europeia à opressão política recente.
Após o filme, tivemos comentários da professora Soraia de Carvalho que nos lembrou que o Sudão é um país marcado por uma história que parece sempre tentar ser apagada pelos poderes que o dominam, além de carregar as feridas abertas do colonialismo britânico-egípcio, o tipo de ocupação que não apenas explora recursos, mas também reconfigura identidades e fronteiras para servir a interesses externos. Depois da independência, vieram as sucessivas crises políticas, as ditaduras militares, a repressão e os conflitos civis. A revolução de 2019, que Maddeb acompanha, nasce dessa exaustão coletiva e da vontade de romper com décadas de violência institucional. Mas como o filme mostra, a esperança não é imune: a retomada militar, os massacres e a guerra que se seguiu ameaçam apagar essa chama. É por isso que a câmera de Hind Meddeb é tão urgente ao filmar para lembrar, para impedir o esquecimento.
Mas, antes do Sudão, estivemos no Marrocos com o filme Rainhas (2022). Nele, um road movie místico cheio de ação e perseguição policial. Aqui, acompanhamos Zineb, uma mãe fora da lei que foge da prisão para salvar a filha da custódia do Estado e faz Asma de refém. Juntas, as três, partem em um caminhão em fuga pelo deserto fugindo não só da polícia, mas também das marcas do patriarcado e da exploração europeia, principalmente francesa e espanhola, que moldou fronteiras e relações de poder. Hoje, o Marrocos vive uma monarquia que, apesar de aparentar estabilidade, mantém controle rígido sobre liberdades individuais, especialmente das mulheres. No filme de Yasmine Benkiran, as protagonistas desafiam esse controle ao cruzar o país numa corrida quase mítica, como se a estrada fosse o único lugar onde pudessem existir plenamente.
Assistir a esses dois filmes juntos, aqui no Recife, foi como perceber dois olhares: de um lado, o real cru e urgente de uma revolução em risco; do outro, a ficção que imagina possibilidades de fuga e resistência. No Sudão, a poesia declamada e pintada nos muros é a munição contra a opressão; no Marrocos, o motor do carro e a imaginação de uma criança é o sopro de liberdade. Em ambos, a mulher árabe é protagonista e centro dessa força motriz.
É raro termos essa possibilidade de encontro, ainda mais em exibição exclusiva. Ver Sudão, Lembre de Nós e Rainhas lado a lado é compreender que, apesar das distâncias geográficas e culturais, a luta contra estruturas coloniais e patriarcais se reconhece nos gestos, nos corpos, na arte. E que lembrar, como no título do filme de Meddeb, não é um ato passivo, mas um exercício contínuo de resistência.
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