Às vezes a gente se pega pensando em quando exatamente uma vida se torna inviável e, não me refiro a diagnósticos clínicos. É sobre o peso de continuar, sobre decisões tomadas no meio de silêncios ou de gritos abafados por paredes finas, sobre o que significa, de fato, poder escolher. E se escolher nunca for uma possibilidade? Pensar no aborto, no Brasil, é inevitavelmente pensar em classe, raça e geografia. O que pra algumas pode ser um incômodo burocrático, para outras é questão de sobrevivência.
Ainda Não É Amanhã, primeiro longa-metragem de Milena Times, mergulha fundo nessa camada espessa do cotidiano de muitas brasileiras, sem fazer alarde, sem precisar de grandes gestos, sem jogos moralistas, mas sim com um olhar intimista e delicado. A diretora constrói um retrato sensível de uma juventude atravessada por desejos, responsabilidades e heranças silenciosas.
Janaína, a protagonista de dezoito anos vivida com notável naturalismo por Mayara Santos, mora com a mãe Luciana(Clau Barros) e a avó Rita (Cláudia Conceição) em um conjunto habitacional na periferia do Recife. É a primeira da família a entrar na universidade, um marco que carrega consigo tanto esperança quanto tensão, o futuro como possibilidade, mas também como ameaça ao que está estabelecido. Quando uma gravidez inesperada surge, o chão de projetos recém traçados começa a se desfazer aos poucos. Não há gritos nem grandes confrontos: o filme prefere o ruído das conversas no quarto, o som de louça sendo lavada, o peso das pausas nos diálogos curtos, os muitos gestos e olhares de aflição da protagonista.
Milena Times filma tudo com uma proximidade quase tátil. A câmera habita os mesmos espaços que suas personagens, respeitando seus silêncios e hesitações. É um filme que se faz no detalhe, no jeito como Janaína se deita na cama, no olhar cansado da mãe depois de um dia inteiro como cabeleireira, no movimento lento e quieto da avó que parece compreender mais do que verbaliza. A montagem pode parecer irregular em alguns momentos, mas reflete essa vida que não segue linha reta, esse tempo que não se encaixa nos relógios da cidade e da vida. Há quebras, como se o filme respirasse junto da personagem principal, ofegante às vezes, paralisado em outras.
Ao centrar em três mulheres de gerações diferentes, Ainda Não É Amanhã não busca lições de moral nem resoluções fáceis. A avó, a mãe e a neta convivem entre conflitos e afetos, marcadas por um ciclo que se repete de maneira quase invisível, mas que o filme consegue iluminar com delicadeza. Cada uma dessas mulheres carrega seus próprios silêncios e dores, e o aborto, nunca tratado de forma panfletária, surge como ponto de contato entre o que foi vivido e o que ainda pode ser interrompido. O corpo de Janaína é território de disputas, mas também de resistência. Há uma cena específica, breve e potente, em que a jovem recebe o apoio da amiga em meio ao caos urbano, um gesto simples de acolhimento que se sobrepõe à ausência de políticas públicas ou ao peso do julgamento.
A força do filme está justamente nessas redes de apoio sutis: a amiga que oferece companhia e até suporte financeiro, a mãe que demonstra afeto no modo como penteia o cabelo da filha e no acolhimento silencioso quando descobre a verdade, a avó que observa e escuta com uma sabedoria quieta, e até o namorado de Janaína, que apesar das próprias limitações, parece disposto a não soltar sua mão. São gestos mínimos, mas profundamente significativos, que sustentam o que resta de autonomia em uma realidade onde o Estado quase sempre falha. Nesse sentido, o longa dialoga com outras obras que tratam do amadurecimento como um processo íntimo e muitas vezes solitário, como Praia do Futuro (2014), de Karim Aïnouz, onde os afetos também se expressam por ausências e silêncios, e O Acontecimento (2021), de Audrey Diwan, que expõe com crueza o aborto como ruptura de um ciclo, de um destino traçado, de uma juventude que precisa envelhecer antes da hora.
Ainda Não É Amanhã compartilha com esses filmes a sensibilidade para retratar decisões irreversíveis em corpos marcados por desigualdade, entretanto, no caso de Janaína, soma-se a marca do corpo negro, periférico, cujas escolhas sempre carregam um peso histórico e estrutural. É um filme que entende como raça, classe e gênero se entrelaçam na hora de decidir (ou não) sobre o próprio corpo. E tem a coragem de fazê-lo sem recorrer ao drama fácil ou à vitimização, mas pela via do afeto, da escuta e da intimidade que se constrói entre mulheres que, apesar de tudo, se apoiam.
É importante também destacar como a diretora escapa das armadilhas do miserabilismo. A vida na periferia não é estetizada, tampouco romantizada. É apenas o pano de fundo concreto onde essas histórias se desenrolam, com seus pesos e pequenas alegrias. Pode-se concluir que é um filme sobre o intervalo entre o que se deseja e o que se consegue. É sobre corpos jovens já marcados por escolhas que não foram suas. Mas também é, de forma sutil, sobre coragem, não aquela épica, grandiosa, mas a coragem miúda de quem insiste em continuar. Milena Times estreia com uma obra marcante, sensível e poderosa em sua contenção. O tipo de trabalho que pode muito bem ser o começo de algo.
Distribuído pela Embaúba Filmes, Ainda Não É Amanhã estreia nos cinemas no dia 5 de junho e merece ser visto com o tempo e a atenção que exige: um tempo mais próximo do coração que do relógio. Visto em cabine online através da Sinny Assessoria.
Aproveito também para dizer que o filme de Milena vai ter uma sessão debate aqui no Recife no Cinema da Fundação Derby. nesta quinta-feira dia 05/06. Estará presente além da própria diretora, a produtora Dora Amorim, parte da equipe e elenco. Momento imperdível!
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