Mais pesado é o céu ou quando as solidões se acham. Foi com essa sensação que saí da sala de cinema ao assistir ao mais novo filme de Petrus Cariry e o sétimo de sua carreira. Petrus que já havia me conquistado com A Praia do Fim do Mundo (2021), Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015) e O Barco (2018), chega agora em 2024 com um road movie bem nordestino, explorando memórias, degradações de um sertão brasileiro esquecido, vida e morte. Conhecido por seu trabalho autoral e sua abordagem visualmente poética e introspectiva, Petrus gosta de abordar geralmente em seus trabalhos temas universais, como a morte, a solidão, e a condição humana, muitas vezes em configurações de cenários rurais ou remotos do Brasil. Com sensibilidade particular e narrativas de combustão lenta, Petrus se mostra um diretor que está muito mais preocupado em explorar e desenvolver suas personagens e emoções do que propriamente nos entregar soluções fáceis e rápidas.
Teresa (Ana Luiza Rios) acolhe um bebe abandonado em um barco na beira do alagado onde ficava a antiga cidade de Jaguaribara. Ela então conhece Antônio (Matheus Nachtergaele) que está também na beira do alagado e os dois, conectados pelas antigas memórias da cidade submersa pela represa, logo iniciam uma longa jornada pelas estradas do interior do Ceará formando uma improvável família que, mesmo sem perspectiva de futuro, ainda se apegam a uma fina linha de esperança.
O nordeste brasileiro pode nos entregar muito mais do que histórias de dor e sofrimento, mesmo que essas questões se entrelacem com outras experiências. Aqui, Teresa e Antônio são dois personagens que foram fortemente atravessados por um Brasil devastado moral e politicamente. Tiveram suas esperanças ceifadas em circunstâncias de calamidades de maus gestores públicos, mas também de uma pandemia. É quando eles tentam se refazer voltando para um lugar que outrora lhes foram de afeto, que percebem a vida lhes sendo mais uma vez desafiante. O bom é que em meio a tudo isso eles também encontram solidariedade e a dureza de suas vidas vai virando um interessante contraponto que dialoga sobremaneira com a paisagem que oferece ao mesmo beleza e angústia.
Teresa é um mistério e seu olhar, assim como sua história e atitudes são elementos enigmáticos dentro desta trama. Sua maternidade imposta e construída, assim como sua feminilidade e relações com outros personagens, vão nos conectando com ela ao mesmo tempo que queremos decifrá-la. Esse deve ser o mesmo sentimento de Antônio, homem solicito, gentil e sensível, um contraponto nesse peso patriarcal e machista que a personagem de Ana Luiza vai esbarrando pelos caminhos. Mas, Antônio é conformista, talvez um conformismo de quem cansou de de viver rastejando mesmo em pé. Mesmo assim, Teresa afirma categoricamente que ele não é homem suficiente para ela. Eles buscam suas maneiras de sobreviver às adversidades, vão se encontrando, e também se perdendo, sem esquecer que em meio a isso tudo, existe uma criança que só faz chorar e que ainda precisa de cuidados. Além disso, o filme nos coloca diante de uma nova configuração de sociedade e de novas posições masculinas diante de um mundo mais feminino.
Marcado fortemente por uma direção sensível, porém densa, Mais Pesado é o Céu entrega momentos que flertam com o insólito e o crime. Enquanto os personagens enfrentam suas lutas particulares, há um assassino em série solto pela localidade matando mulheres e homens com fortes requintes de crueldade. Nesse ponto, a trilha sonora original de João Victor Barroso é uma atração à parte que somada ao peso da trama, agrega demais ao tom de mistério. Gosto particularmente da parte em que Teresa e Antônio se demoram alguns minutos observando na parede de uma casa porta retratos pintados manchados pela ação do tempo. A câmera vai se aproximando das manchas, enquanto a imagem alterna entre o olhar de Teresa e as pinturas. A música de Victor, densa igual ao filme, transforma tudo aquilo ali em tensão e medo. Lembrei muito da mancha viva em Trabalhar Cansa (2011, Juliana Rojas, Marco Dutra) e foi um dos momentos do filme que mais me deixou tensa. Essa evocação da estranheza do tempo que age implacavelmente nas coisas e nas pessoas também foi o que me fez ficar encantada com A Praia do Fim do Mundo e aí mais um acerto da parceria perfeita entre Petrus e João Victor. Os dois, cada um em sua especialidade, sabem como construir em nós essa iminente sensação de que algo terrível está prestes a acontecer. Some a tudo isso o excelente trabalho de fotografia também feito pelo próprio Petrus que, com imagens acachapantes, nos faz perceber o quão pequenos somos ainda diante da imensidão de possibilidades e da beleza do que há entre o chão e o céu.
A história ainda conta com Fátima, personagem de Silvia Buarque que veio do Rio de Janeiro e também foi colocada naquela configuração social depois de ser abandonada pelo marido. Ela refez sua vida, montou um pequeno restaurante e agora ajuda Teresa, Antônio e o menino a refazerem suas vidas. É ela que cede a pequena casa para os dois se abrigarem. Tem também Letícia, vivida por Danny Barbosa AKA A Cocada da Rainha Preta, ela é atendente em uma conveniência de um posto e cruza também o caminho de Teresa quando esta vai comprar um pouco de alimento quando consegue dinheiro da viração que faz dia a dia.
É curioso como mesmo não sendo um filme de horror, ele está presente nos momentos mais pontuais e cruciais. Horror é perspectiva, é olhar, é vivência. O grito violento e desesperador de Teresa que não é ouvido depois de ser maltratada por homens, o desespero da falta de perspectiva, a iminente sensação de viver no limite da vida, a miséria material e o desejo de morte circundam esses personagens até que chega ao ponto do final catártico que dialoga diretamente com o clássico referencial 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), cena que, inclusive, o próprio Matheus já tinha feito em Carro Rei (2021, Renata Pinheiro), outro filme que dialoga com o fantástico e que oferece possibilidades de um novo cinema nordestino e cearense de gênero atrelado a questões sociais que vem se destacando cada vez mais no cenário nacional e internacional atualmente como Motel Destino de Karim Aïnouz, celebrado e ovacionado em Cannes esse ano e Estranho Caminho de Guto Parente.
Mais Pesado é o Céu chega aos cinemas em circuito comercial nesta quinta dia 08 de agosto. Imperdível!
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