Filmes sobre guerra já foram produzidos aos montes, uma ampla gama de abordagens que passa desde a romantização até a representação crua da realidade num front. Sempre tive a impressão de que esses filmes, no fundo, não conseguem justificar a existência das próprias guerras e acho que muita gente deve compartilhar dessa mesma visão, quer tenham vivenciado o conflito de perto ou visto apenas através de imagens jornalísticas.
É com essa perspectiva que Alex Garland trabalha em Guerra Civil. A de quem só está no front para ir atrás de registrar as imagens, como Lee Smith (Kirsten Dunst), uma fotojornalista de guerra renomada e cansada que dá a entender ter tentado através de suas fotos convencer o mundo que guerras não deveriam existir. Ela e o repórter Joel (Wagner Moura) estão agora na jornada de cobrir mais uma guerra, só que agora dentro do próprio país, novidade para eles. Missão após missão, eles almejam sair de Nova York após um ataque quase fatal e chegar aos portões da Casa Branca na esperança de encontrarem o presidente (Nick Offerman) sob ataque e fazer, quem sabe, a foto e a reportagem da vida deles.
Mas afinal, o que está acontecendo nos Estados Unidos da América nesta ficção distópica? Bem, as informações são escassas. Sabemos apenas que o atual presidente é um militar que celebrou sua vitória sobre a democracia em um discurso televisionado. Além disso, ficamos cientes de que, por razões desconhecidas, os estados da Califórnia e do Texas se separaram para formar seu próprio governo, denominado Forças Ocidentais. A Flórida também seguiu o mesmo caminho, estabelecendo seu próprio governo. Tudo indica que esses grupos estão próximos da vitória, prestes a conquistar o território da Casa Branca e eliminar o presidente.
Ao lado de Lee e Joel, está Sammy (Stephen Henderson), um correspondente sábio e renomado do The New York Times, o mais velho do grupo, que vê nessa situação a oportunidade de realizar sua última grande história de guerra. É ele quem parece conhecer um pouco mais sobre a índole do presidente ao compará-lo com Mussolini. No entanto, o grupo recebe a companhia de mais uma pessoa: Jesse (Cailee Spaeny), uma jovem que quase perdeu a vida no ataque a Nova York e foi salva por Lee, sua grande heroína, a quem admira profundamente e agora deseja seguir os passos, tanto profissionalmente quanto rumo a Washington, D.C.
Estamos habituados a ver os Estados Unidos retratarem constantemente os outros como inimigos, seja russos, chineses, árabes, comunistas ou até aqueles que não fazem parte de uma determinada casta supremacista. No entanto, em Guerra Civil, Alex Garland redefine essa dinâmica ao apresentar os estadunidenses como seus próprios adversários em um novo cenário político interno que, mesmo originado de uma fantasia, essa guerra irreal não parece ser difícil de acontecer dado o atual contexto político do país após invasão do capitólio e de toda tensão caseira. No meio dessa turbulência, o grupo encara não só os horrores do conflito, mas lidam também com seus próprios medos e traumas. É nesse lidar com os elementos humanos dos personagens, que a meu ver, Garland falha. Fica tudo meio turvo, frio, distante em meio a grandiosidade das belas imagens e enquadramentos de sua câmera. Isso é o que tem de mais atrativo no filme. Aliás, isso e as atuações de Kirsten, Wagner, Cailee e Jesse Plemons, mesmo aparecendo com tempo super reduzido, entrega um dos momentos mais tensos da trama.
Outra coisa que pode incomodar os desavisados, é a escolha de Garland pela isenção. Ele sabe o terreno perigoso que pisa e para mim, essa escolha parece funcionar em relação a proposta inicial que é unicamente a visão dos jornalistas, como diz a personagem de Lee que na sua profissão, questionamentos levam a mais questionamentos e ela não estão em busca de perguntas, ela apenas mostra e deixa que outros façam as perguntas. É provável que muitos espectadores rejeitem essa isenção porque ele se recusa a confirmar seus preconceitos, visões politicas, ideologias ou a adotar uma posição sobre questões do mundo real. Mas são justamente as ambiguidades e o potencial interpretativo que tornam Guerra Civil um grande cinema, semelhante ao filme Propriedade (2022) de Daniel Bandeira que ao colocar duas classes sociais opostas como protagonistas e por não optar por uma visão maniqueístas, cria no espectador sentimentos mistos e perturbadores.
A guerra de Garland não é a jornada para o inferno vermelho e ardente que já vimos em filmes como Platoon (1986), Apocalipse Now (1979), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e tantos outros. A Guerra de Garland é só dele, ou melhor, de seus personagens e, especificamente de Lee e Jesse. É uma guerra que flerta de certa forma com a internalização e a deterioração de um Vá e Veja (1985) ou de um Glória Feita de Sangue (1957) com missões suicidas. Garland tenta transpor neste filme o mesmo pensamento que deu em seus outros trabalhos, como identidade feminina, autonomia humana e crítica ao masculinismo. Lee e Jesse são duas mulheres em meio a um mundo que reforça padrões tradicionais tóxicos de masculinidade e violência. Talvez venha daí a dureza de Lee e é quando eles adentram em uma cidade totalmente fora daquela realidade de guerra, onde pessoas vivem suas vidas normalmente por escolha, que Lee ao experimentar um vestido e se olhar no espelho, olhe para dentro de si a procura da mulher que já foi um dia. Algo se quebrou, algo despertou e algo também morreu ali.
Assim como Lee passa por um processo de metamorfose, Jesse também vive sua transformação interna e passa a absorver características de sua heroína à medida que convive mais com ela e passa a enfrentar mais dos horrores. Ela vai perdendo o medo, assim como a reverência que nutria por Lee. Jesse assume riscos cada vez maiores e sua mudança vem acompanhada também da perda de sua inocência. Mesmo oferecendo todos esses aspectos humanos, o filme de Garland parece ainda carecer de certa profundidade e o desfecho dessa jornada, embora tente criar impacto por meio de uma imagem que cause drama e choque, acaba por pecar com um final brochante igual ao seu filme anterior, Men (2022).
Concluindo, assistir a Guerra Civil pode ser uma experiência angustiante e perturbadora para alguns, mas para outros, ao término do filme, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, o que poderá ficar é uma sensação de frustração, de raiva e de não ter vivido uma catarse. Vá e veja!
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