“Para se proteger de uma revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, Teresa, uma mulher traumatizada por um episódio anterior de violência urbana, se tranca em seu carro blindado. Separados por uma camada de vidro, dois universos estão prestes a colidir”.
Quis começar com uma sinopse resumida sobre o filme apenas para dizer que Propriedade trabalha camadas muito mais profundas do que a simplicidade da sinopse indica. Quero partir também de uma frase dita por Daniel Bandeira, diretor e roteirista do filme, que diz: “A história do Brasil é feita de fantasmas” que me deixou pensativa, a traçar paralelos com a frase da escritora e pesquisadora de horror negro, Tananarive Due, ela fala: “A historia negra é o horror negro”. A partir disso e da sinopse do filme, é possível traçar ligações históricas entre racismo, classismo e propriedade privada, especificamente sob a ótica brasileira nordestina da luta de classes advinda de anos e anos e anos de colonialismo e coronelismo.
É sabido que o povo negro, ou melhor dizendo, o povo racializado, ainda sofre as consequências da negligência social advinda da escravidão, dos maus tratos em plantações, das más condições de vida e de trabalho, seja aqui no Brasil de Daniel ou nos EUA de Tananarive. É aí que a frase do diretor se torna universal, Bandeira, brasileiro de Pernambuco, traz discussões sobre raça, gênero e classe para o centro do debate em Propriedade. Pensado desde 2006, sua história logo no início se desloca de um cenário na beira mar do Recife para uma área rural no interior no estado, mostrando diferentes rostos da mesma opulência, onde diálogos bem construídos, edição esmerada e uma premissa engenhosa que, ao fim da projeção, pode revelar mais sobre nós do que queremos ou imaginamos.
No centro dessa trama temos Teresa, magistralmente interpretada por Malu Galli e a gigante Zuleika Ferreira no papel de Tonha, uma mulher mais velha, espécie de líder matriarca dos trabalhadores que acaba assumindo esse papel e liderando parte do grupo, depois que eles recebem a notícia de que a fazenda a qual dedicaram toda a vida trabalhando e sofrendo todo tipo de intempéries, vai fechar para virar um grande hotel e sem dar nenhum respaldo e indenização a eles, inclusive sem direito a receber os próprios documentos. Muitos deles, principalmente as mulheres mais velhas, acabam por ter grande relevância nessa história, marcadas fisicamente, também, nos fazendo pensar que os antigos monstros e horrores ainda reverberam forte.
Ficar perto de Daniel esses dias, assistir sua masterclass e estar no debate após sessão de pré-estreia foi de imenso aprendizado e ajudou a entender o poder imagético que um filme de terror proporciona e significa para ele. Por isso, Pedro Sotero, diretor de fotografia, se aproveita muito de texturas e imagens estáticas que causam impacto e ajudam a compor a tensão que o filme pede em cada momento.
Propriedade é uma obra deveras desafiadora, mas também catalisadora enquanto ficção de gênero. O que assistimos, é o reflexo do que vivemos há anos, uma aparente cordialidade e civilidade que é quebrada e acaba virando aquele barril de pólvoras. Nós, enquanto espectadores, estávamos acostumados a receber cinemas e narrativas de forma muito passiva, onde muitas vezes nos guiavam a algum entendimento e a torcer para algum lado. Perceber que a proposta do diretor é mais de levantar questionamentos, transforma a experiência fílmica num verdadeiro desafio de gênero. O conflito em tela trabalha para nos tirar desse lugar de conforto e instigar o debate.
A forma que Daniel filma isso é de um preciosismo técnico imenso, lembrando grandes nomes do cinema como Peckinpah, Carpenter, George Miller e até Kleber Mendonça Filho. Mas, como característica própria do nosso cinema de gênero, Bandeira imprime sua própria marca sem maniqueísmo e foca em cada detalhe de expressão, olhar, fala, gesto, principalmente da personagem Teresa que em sua maior parte está em silêncio, mas que sabe usar perfeitamente sua linguagem corporal para dialogar com a gente. Tudo isso faz com que o filme não caia no tédio ou nas armadilhas de ritmo que muitos filmes de thriller/suspense/ação caem.
Entrando na questão carro enquanto personagem e símbolo alegórico de imensa importância para determinadas classes, é só perceber como o marido de Teresa, interpretado por Tavinho Teixeira, é carinhoso com seu mais novo brinquedo e é duro, frio e cruel com aqueles seres humanos que serviram as várias gerações de sua família. E aí embarco na questão da subversão de gênero que o diretor se permite, que é o da invasão domiciliar, no caso de Propriedade, o carro vira o novo lar da personagem de Malu, objeto impenetrável e que agora ela passa a defender esse território assim como sua vida. Gosto que ao mesmo tempo em que ela se encontra inerte em sua mais nova condição, ela também ataca.
O suspense aqui é o gênero perfeito para transmitir as ansiedades que refletem a perda da propriedade privada. A tal obsessão pela conquista da riqueza vem junto das várias omissões que acarretam em várias consequências e que vão gerando problemas e mais problemas. Filmes sobre invasão domiciliar, sobrevivência e vingança trazem imbuídos esses medos refletidos nesta classe média e média alta branca pois acabam ameaçando não só os valores materiais econômicos, mas também os familiares.
Alguns filmes vêm à mente como Parasita (2019), Quarto do Pânico (2002), Cabo do Medo (1991), mas o que me tocou mais em paralelo ao filme de Daniel, é um filme da década de 70 que não dialoga de uma forma temática, talvez, é mais pela questão da subversão do olhar e da proposta ousada da invasão domiciliar. Lute por Sua Vida (Fight for Your Life, 1977) dirigido por Robert A. Endelson e carrega um forte apelo de exploração e violência racial, o filme é conhecido por sua abordagem controversa quando coloca o invasor sendo criminosos brancos racistas que escapam da prisão e invadem a casa de uma família afro-americana. A narrativa é centrada na tentativa de resistência e autodefesa da família diante da violência extrema dos invasores. No entanto, assim como Propriedade, Lute por Sua Vida gera polêmicas conflituosas.
Gosto muito das possibilidades e a liberdade que o cinema de gênero proporciona ao discurso político-social presente em Propriedade, reflete muito a nossa polaridade onde cada lado cria suas verdades e ninguém dialoga, ninguém se coloca no lugar do outro e as tensões só vão crescendo. O thriller/suspense/horror do filme se sobressai muito mais do que qualquer pensamento temático dessa tensão social. Aqui não tem negociação, na verdade, os trabalhadores até tentam um diálogo, mas suas vozes nunca são ouvidas, aqui para nós, algum dia foi?
É no meio dessas camadas que a trama vai se desenrolando, nesse jogo eterno entre ricos e pobres confinados em seus ideais e permeado de simbolismos para além de bandeiras panfletárias. Para o bem ou para o mal, ninguém sai indiferente do filme, por isso digo, vamos usar a ficção em prol desse sentimento impulsionador à discussão e assista Propriedade, debata Propriedade, reflita Propriedade.
Depois de passar por vários festivais, receber prêmios e fazer um circuito nacional de pré-estreias seguidos de debate, Propriedade estreia nos cinemas dia 21 de dezembro pela sessão vitrine Petrobrás a valores de ingresso acessíveis. Nem preciso mais dizer que é imperdível, né?
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