Pedágio (2023)

Bendita hora que resolvi assistir Carvão no último dia de assinatura do Telecine. Conhecer o cinema de Carolina Markowicz esse ano, foi uma das melhores coisas e por causa disso estava bem ansiosa para assistir também ao Pedágio, além, claro, de toda repercussão positiva do filme em suas andanças por festivais mundo e Brasil afora. Carolina faz um cinema de andada, como a gente costuma chamar por aqui, um cinema de costume, ácido, cru, que está sempre em ponto de ebulição e que é muito fácil de se identificar, pois são gentes que compõem grande parte da nossa escala social, gentes de nosso convívio, desde os mostrados lá em Carvão (2022) em uma propriedade rural, até os das grandes ou médias cidades com suas fábricas, indústrias e perrengues pessoais, mas também com suas demagogias e hipocrisias, máscaras sociais que muitas vezes vestimos para a sobrevivência, foi assim em seu filme do ano passado e é assim em Pedágio, seu mais recente filme. 

Maeve Jinkings que volta a trabalhar com a diretora após Carvão, interpreta Suelen, mãe solo que vive a inquietude da convivência com um filho adolescente gay e que o quer de volta para a heterossexualidade. Tiquinho (Kauan Alvarenga) é seu filho, um jovem de 17 anos introspectivo, de poucas amizades, mas que vive fazendo vídeos para a internet dublando Billie Holiday sob luzes coloridas enquanto faz propaganda de cosméticos. Eles moram em uma periferia de Cubatão, cidade de São Paulo com um grande parque industrial e permeada por fumaças de refinarias. É nessa paisagem cinza, industrial, que boa parte das desventuras dos dois protagonistas de Pedágio se desenvolve. 

Suelen é cobradora de pedágio e já de início somos inseridos em seu mundo, onde antes de partir para o trabalho, às cinco da manhã exerce seu ritual de fé acendendo a vela da virilidade para seu filho do alto de um morro na esperança que Deus o cure do que ela considera ser uma doença. Atrasada, ela corre perde o transporte e pega carona no caminhão de gás e no intervalo, encontra sua amiga e companheira de profissão, Telma, a maravilhosa Aline Marta Maia, que já esteve em outro filme de Carolina, o excelente Carvão (2022) e volta a ter um papel bem parecido de Juracy, uma mulher que aparenta ser o que não é e até de certa forma até manipuladora.

No refeitório, Telma e Suelen se demonstram apreensivas e com certa vergonha do mais novo vídeo de Tiquinho, é quando Telma, aconselha a amiga que ela tem que dar um jeito naquilo e que não é acendendo vela em morro alto que ela vai conseguir. Mesmo mortificada, a mãe meio que concorda, mas não sabe mais o que fazer para evitar que o filho não continue sendo chacota nos grupos de WhatsApp do trabalho. 

Do cinza de Suelen, partimos para o mundo cor-de-rosa de Tiquinho, numa transição belíssima, enxergamos essa cidade sob sua perspectiva, ou melhor, da lente dos seus óculos enquanto ele caminha da escola para casa cantando Billie Holiday que toca em seu fone de ouvido. É assim que Luís Armando Arteaga constrói a cinematografia de Pedágio, ora cinza, ora rosa, alternando à medida que a narrativa vai se desenrolando. De forma íntima e delicada, o passeio entre esses dois personagens, suas angústias, suas certezas que desmoronam e se corrompem, a gente vai se conectando com eles de uma forma bem equilibrada, sofisticada, realista e consequentemente, eficaz.

Carolina desenvolve muito bem seus personagens, a princípio nesse núcleo familiar tenso e desconectado que ainda conta com a semi-presença de Arauto, interpretado por Thomás Aquino, um ladrão de joias e relógios caros que esconde o que rouba na casa de Suelen, mas sem ela saber. Um adolescente que está prestes a se tornar adulto e é pressionado o tempo todo pela sua mãe a “abandonar essa vida”, como ela mesma confessa para a amiga Telma: “É mais do que a maioria das mães tem que suportar em toda a vida”. Telma, uma mulher casada há 39 anos, aparentemente recatada, frequentadora de igreja, voz mansa e piedosa, fala sobre um pastor/guru que está vindo da Europa e que tem um tratamento eficaz para a “doença” de Tiquinho. Sim, é a tal da cura gay e todo o horror, preconceito e agravos à saúde mental de quem é imposto a tal "terapia de conversão". 

Apesar do tom leve, satírico e humorado nas cenas de terapia, o caso é bem grave na vida real, recentemente tivemos o exemplo de Karol Eller, assumidamente lésbica, seguidora do bolsonarismo e que afirmou ter passado por uma "cura gay". Karol, tempos depois, foi encontrada morta e o caso registrado pela policia como "suicídio consumado". Infelizmente esse tipo de caso, não é isolado a se pensar no contexto atual em que estamos inseridos onde cada vez mais o ódio, o conservadorismo politico e social tomam conta e espalham desinformação com a falácia de que a heterossexualidade é a única sexualidade certa. 

No entanto, Suelen não tem como bancar o tratamento, é quando ela se reaproxima de seu agora ex namorado, Arauto,  para conseguir levantar uma grana fazendo o que ele faz. Mesmo sem ter ainda como pagar, mas graças a intervenção de Telma que estava muito preocupada com o processo irreversível da “doença” já que ele estava se aproximando da maior idade, Tiquinho começa seu processo de "ressignificação bioenergética", sim, é esse o nome do método do tal pastor/guru. São cenas hilárias que beiram o absurdo e o surreal acabando por quebrar um pouco o tom pesado da trama.

Pedágio é muito esse Brasil atual de um fundamentalismo delirante e demagogo que pressiona cada vez mais seus fiéis a serem embustes de humanos perfeitos enquanto se sentem no direito de agir e coagir quem age e pensa diferente deles, um filme com vários fios que norteiam essa vida difícil, densa, pesada e nebulosa da classe trabalhadora, mas também carrega as esperanças e o horizonte de uma nova vida para um jovem gay, que mesmo sem se entender muito bem com sua mãe, a ama de verdade e até parece entender sua preocupação. Tiquinho não é de muitas palavras, mas tem gana de viver e ponto demais aqui para o ator Kauan que é extremamente sensível e pontua muito suas emoções no olhar e nos silêncios. A câmera de Carolina é deveras focada nessas emoções, tanto a do jovem, quanto a de Suelen que num simples ato de fumar, passa toda a angústia das preocupações de uma mãe. E então, Pedágio chega ao fim, mas no cinema (ou aonde você estiver assistindo), só que a história daqueles dois continua e é isso que a gente fica esperando enquanto a tela escurece e os créditos sobem, a vida continua. Nem sempre do jeito que planejamos, mas continua.

Assisti ao Pedágio em cabine de imprensa à convite da Paris Filmes e Espaço Z assessoria. Se liga que o filme estreia nos cinemas em 30 de novembro de 2023. Vale muito a pena conferir!


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