"Desde o início dos tempos, desde que a primeira garotinha existiu, existem bonecas. Mas, as bonecas foram sempre e para sempre, até que..."
Branca, loira, de olhos azuis, magra com medidas perfeitas, roupas bonitas, cabelos, maquiagem e unhas sempre impecáveis e o plus: sempre de salto. A boneca mais famosa do mundo, a qual nutrimos uma relação contraditória de amor e ódio por representar o ideal inalcançável de mulher e feminilidade, mas também por carregar o peso de sua representação (ou falta dela) estereotipada de gênero, ganhou uma nova adaptação dessa vez pelas mãos de Greta Gerwig que também co-roteirizou Frances Ha, dirigiu e escreveu Lady Bird, Adoráveis Mulheres e foi em 2018 a quinta mulher a ser indicada ao Oscar de melhor direção, pelo filme Lady Bird, concorrendo também ao prêmio de roteiro original.
Da primeira boneca criada por Ruth Handler e lançada pela Mattel em 1959 até o novo filme, foram 64 anos e algumas mudanças, algumas significativas, outras mais lentas, mas é inegável pensar o que a Barbie representou e ainda representa para meninas e mulheres, para o bem ou para o mal. Ruth gostava sempre de repetir de como criou a boneca e de como através dela meninas poderiam ser tudo o que quisessem. De fato, a Barbie se transformou em todo tipo de profissão, desejos e sonhos, mas será que ela representava a todas? A primeira Barbie negra só chegou em 1980, a primeira Barbie cadeirante em 1997, mas foi descontinuada por questões de acessibilidade, sua cadeira não passava pela porta da casa da Barbie. Apenas em 2016 a Mattel começou a pensar em novos biotipos e raças “para representar melhor o mundo atual”. Em 1982 a Barbie chegava ao Brasil pela Estrela, marca clássica tradicional brasileira de manufatura de brinquedos. Seu primeiro filme foi em 1987 “A Estrela do Rock” com apenas 30 minutos de duração, desde então foram mais de 30 filmes, todos animação. E, enfim, 2023 com o primeiro Live Action e a pergunta que rolava lá no íntimo: como será que vão fazer um filme da Barbie hoje em dia com todas as demandas, lutas e conquistas de poder, liberdade, autoafirmação, interseccionalidade e equidade? Bom, a resposta veio e posso dizer sem pestanejar que não decepcionou.
A Barbie era para mim o meu refúgio. Eu chegava da escola, almoçava e ia direto para o quarto que tinha uma bicama e na parte de baixo eu deixava tudo montado. Era a minha Barbielândia particular. Ninguém mexia. Ali de fato eu podia ser o que quisesse, beijar, brigar , se aventurar, dirigir, vestir, ser amiga e usar o cabelo como quisesse. Greta, diretora e roteirista junto com seu companheiro Noah Baumbach, sabe de tudo o que representa a boneca, do seu impacto, do seu legado e de como ela não é uma só, mas várias personalidades também. E é nisso que a trama se desenvolve. Barbie deixa de ser perfeita naquele mundo que só existem para serem perfeitos. E agora? Agora é consertar isso. Ela procura a Barbie rejeitada, aquela que deixou de ser perfeita porque alguma dona não a tratou bem. É a excluída quem aconselha a Barbie das Barbies a ir para o mundo real em busca de sua humana (e humanidade) e saber os motivos que a fizeram deixar de ser perfeita.
Como se não bastasse todos os dilemas da Barbie, existe um Ken apaixonado, porém atormentado por amar demais e ser rejeitado, ele luta contra esse sentimento, mas também luta com sua insegurança em relação a outros Kens. Isso acaba quando ele entra em contato com o mundo real e percebe que ali, o homem manda. Ele é introduzido no patriarcado, gosta e quer fazer parte disso, mas no mundo dos humanos fica impossível para ele sem as qualificações devidas, então ele volta para a Barbielândia e constrói seu próprio patriarcado entre muito sarcasmos, críticas inteligentes, bastante humor, ótimas atuações de Margot Robbie (Eu, Tonya, Aves de Rapina, Era Uma Vez em Hollywood) e Ryan Gosling (Drive, La La Land e Blade Runner 2049) e uma narração impecável cheia de tons e nuances irônicas de Hellen Mirren. Estão no elenco ainda: Issa Rae (Insecure) como a Barbie presidente, Simu Liu (Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis) como uma das versões do Ken, Michael Cera (Scott Pilgrim Contra o Mundo, Juno) como Allan, criado em 1964 para ser melhor amigo do Ken e para que encontros duplos fossem possíveis para o par de bonecos principal; Will Ferrell (Quase Irmãos, Um Duende em NY) como o CEO da Mattel, Emerald Fennel (Bela Vingança) como a Barbie grávida que não deveria estar ali pois foi tirada de linha já que bonecas grávidas geram polêmicas, America Ferrera (Quatro Amigas e um Jeans, Beth, a Feia) como a humana da Barbie, Ariana Greenblatt (Vingadores: Guerra Infinita) como a filha da humana da Barbie, entre outras e outros versões da Barbie e do Ken.
Greta sabe o que está fazendo e aonde pisar. Ela soube sobremaneira equilibrar a relação dicotômica que nós mulheres temos com a boneca e ao buscar na Barbie uma metáfora para o amadurecimento de meninas, quando por exemplo ela deixa de lado seu mundo de plástico e tem que lidar com sentimentos humanos como morte, tristeza, decepção, rejeição e até objetificação de seu corpo. Ela é confrontada diretamente com isso pela primeira vez. Logo a Barbie, aquele modelo de perfeição que tanto serviu ao capitalismo, na história de Greta, ela é a própria subversão, a própria crise existencial. Com ela e com o Ken, Greta nos mostra que podemos aprender com nossos erros, pois nem sempre estamos com a bola toda e tá tudo bem.
A Mattel está presente e a diretora ainda ironiza esse mundo empresarial cheio de executivos héteros e brancos que decidem o lucro que vão ter a partir de demandas e acham que entendem o que mulheres são, desejam ou representam. Um dos ápices do filme, homens milionários bobocas sendo satirizados, que tesão.
Em suma, Barbie é mais que um olhar lúdico sobre o que significa ser mulher no mundo real e na fantasia, amadurecer e ter de lidar com sentimentos dúbios o tempo todo e de como isso acaba te transformando de certa forma em ser humano. Sentir, se emocionar, chorar, se decepcionar, ter raiva, sorrir, ficar feliz e ir ao ginecologista. Isso poderá incomodar alguns na mesma medida em que poderá deixar um monte de gente feliz. Definitivamente, é um filme que quebra todas as expectativas.
Fiquei pensando: se a boneca criada por Ruth lá na década de 50 caísse nas mãos das chefes de empresas, o que teria sido a Barbie, sua representação e hoje, o seu legado?
No mais, uma salva de palmas de 9 minutos para todo o design de produção e arte do filme, são impecáveis e atentos a todos os detalhes que construíram o imaginário da Barbie e tudo a sua volta. O detalhe do pezinho é onde começa toda a treta, mas aí vocês vão assistir pra ver. Impossível não ir às lagrimas lembrando de minha infância, dos brinquedos que eu tinha, dos que não tinha e queria. Das roupas, das bonecas e suas profissões, as cores. Do tanto de vezes que desejei morar naquela casa, dirigir o carro rosa, ter a cozinha da Barbie e ter os melhores amigos sempre por perto. Se eu ainda tivesse Barbies, teria dado um beijo em cada uma delas depois de chegar da sessão. Obrigada, Greta!
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