Bugonia e o enxame de certezas absolutas.

Um misto de organismo vivo, onde cada quadro provoca e cada desvio te joga para um lugar mais instigante que o anterior.

Há algo deliciosamente traiçoeiro em Bugonia. Entrei na sessão achando que veria mais um mergulho no absurdo “marca registrada” de Yorgos Lanthimos com mundos tortos onde ninguém se comporta de maneira minimamente humana e tudo parece coreografado por um demiurgo com humor duvidoso. E, no início, até parece isso mesmo. Mas, de repente, o desconforto que te pega não vem do surreal, vem da sensação esquisita de que ~talvez~ esse seja o filme menos estranho dele. Porque o absurdo, dessa vez, não está no que Lanthimos cria, está no que a gente vive. Numa época em que desinformação vira doutrina, gurus digitais viram profetas e certezas pessoais se transformam em micro-religiões portáteis, Bugonia só precisa dar um empurrãozinho na realidade para soar completamente plausível.

A trama começa com Teddy, o operário interpretado por Jesse Plemons, cujo talento especial é acreditar com fervor quase religioso em vídeos e podcasts conspiratórios que garantem que Michelle (Emma Watson), a poderosa CEO de uma empresa de biotecnologia, é uma alienígena infiltrada. Ele não cogita dúvida, nuance ou ponderação. Ele tem certeza. E, como já aprendemos vivendo nos últimos anos, ter certeza basta, até para sequestrar alguém “pelo bem da humanidade”. Então Teddy e seu primo Donny (Aidan Delbis) arrastam Michelle para seu “quartel-general da resistência”, um porão decadente onde eles, com uma formalidade tragicômica, usam ternos puídos para negociar com a suposta invasora. É a loucura do cotidiano elevada ao ritual e, o mais perturbador é como tudo faz sentido dentro da cabeça deles.

É nesse ponto que Bugonia acerta o tom. Não se apoia tanto no grotesco visual, mas na estranheza íntima de perceber que a ficção parece só dois passos à frente das manchetes que consumimos todos os dias. A proximidade com a nossa época, das bolhas algorítmicas ao fanatismo caseiro, faz com que o filme pareça menos “Lanthimos” e mais um espelho desconfortável. E é justamente aí que Lanthimos brilha. Quando ele parece estar se afastando de si, ele está, na verdade, torcendo nossas expectativas até elas quebrarem.

A parceria com o diretor de fotografia Robbie Ryan reforça esse deslocamento. Acostumados às composições esquisitas e às famosas lentes olho-de-peixe de A Favorita e Pobres Criaturas, por exemplo, entramos esperando aquele mundo distorcido como se estivéssemos olhando tudo através de um aquário. Só que Bugonia abandona esse artifício. Nada de grande angular deformada, nada de profundidades esmagadas, Ryan trabalha com uma câmera mais “naturalista”, mas é uma naturalidade perversa, nos colocando em um mundo exatamente como ele é. Essa escolha deixa tudo ainda mais incômodo, pois o estranho emerge da normalidade. É quase um comentário visual sobre como a loucura deixou de exigir cenários estilizados para simplesmente existir. 

E, claro, a sintonia entre Emma Stone e Jesse Plemons amarra tudo. Stone encontra um equilíbrio perfeito entre altivez e fragilidade, mesmo quando está completamente vulnerável como na cena em que, desacordada, tem o cabelo raspado por Donny num ritual conspiratório que parece tão bizarro quanto lógico dentro daquela “resistência” torta. Quando acorda, sua força vem menos do corpo e mais desse olhar que oscila entre incredulidade e tédio, como alguém que percebe que caiu nas mãos de amadores perigosos. Já Plemons opera naquele modo enigmático, quase imóvel, que diz tudo no silêncio. Um homem tão convencido da própria verdade que o mundo ao redor parece sempre um detalhe. Juntos, eles funcionam como dois pólos de um mesmo campo magnético conspiratório. Ele convicto, ela desesperada, e ambos presos numa dança tragicômica onde ninguém realmente tem controle, mas todos acreditam que têm.

Mas Bugonia não nasce do nada. Antes de qualquer diálogo com a tradição ocidental da ficção científica, ele parte de Save the Green Planet!, filme sul-coreano de 2003 escrito e dirigido por Jang Joon-hwan, que serve de base para tudo o que Lanthimos constrói aqui. Eu ainda não vi o original, mas fiquei com vontade. Pois, se a releitura já é esse turbilhão de paranoia, humor sombrio e desespero sincero, imagino o caos vibrante que deve ser a obra que o antecede. Só depois dessa raiz coreana é que Bugonia se abre para um diálogo mais amplo, conversando com a ficção científica paranóica de Os Invasores de Corpos, com o deboche combativo de Eles Vivem, com certas inquietações biológicas de A Experiência e até com o espírito melancolicamente distorcido de Anomalisa (2015), só que não pela trama em si, mas pela solidão desfigurada dos personagens. Tudo isso atravessa o filme, mas Lanthimos torce cada uma dessas referências até que elas virem algo estranho, engraçado, cruel e profundamente familiar.

O mais impressionante, porém, é perceber como Lanthimos parece alimentar um prazer quase infantil em construir um castelo de expectativas para, em seguida, desmoroná-lo com um chute. Ele flerta com discussões sociais, filosóficas, morais e às vezes até parece levar tudo muito a sério, mas, quando você menos espera, ele torce tudo de um jeito que desmonta qualquer ideia de Mensagem, destruindo o próprio discurso enquanto o enuncia, como se estivesse sempre rindo por dentro da importância que atribuímos às coisas. Há algo libertador nisso ao nos fazer lembrar que as certezas, assim como as paranoias, são estruturas frágeis. Um gesto errado, uma cena deslocada, e tudo desaba.

Bugonia, que estreia nos cinemas em 27 de novembro, acaba sendo esse híbrido estranho que circula entre uma comédia sobre um mundo tão lotado de informação que virou impossível separar paranoia de intuição, ou uma ficção científica que quase não precisa de ficção para funcionar, ou um filme que parece mais “normal” dentro da obra de Lanthimos justamente porque o “anormal” virou o nosso padrão. Teddy, no fim das contas, não está tão distante de nós quanto gostaríamos. E que, de certa forma, todos estamos a um clique de acreditar demais em algo que nos conforta.




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