Sempre me incomodou o fato de que, em filmes apocalípticos ou pós-apocalípticos, a raça hegemônica salva ou sobrevivente é quase sempre a branca. Não há espaço para corpos não brancos nesses cenários. Parece que o fim do mundo, mesmo no campo da ficção, ainda preserva a velha ideia de quem merece viver e quem pode ser descartado. Me peguei pensando nisso depois de rever Extermínio 3: A Evolução, do Danny Boyle, e, logo depois, assistir ao curta Sertão 2138 (Deuilton B. Júnior). Nesse curta existe uma cientista negra que desenvolveu uma estação espacial onde as pessoas vivem enquanto a Terra sofre com os efeitos de um ar praticamente irrespirável. Na trama, ela está no sertão pernambucano fazendo alguma pesquisa e descobre de uma maneira nada agradável que não irá com os outros, todos brancos, para a estação que ela própria ajudou a desenvolver. A brutalidade simbólica da cena é gritante, o apagamento racial não vem com tiros, mas com a exclusão planejada do futuro. A personagem é deixada para morrer em uma Terra devastada, mesmo sendo parte essencial da construção da alternativa de vida. Não é apenas ficção, é alegoria. É sobre quem é descartável quando o mundo entra em colapso e sobre quem sempre esteve no centro das decisões, mesmo quando tudo ruía.
O cinema tem repetido esse padrão há décadas. Desde Planeta dos Macacos até Interestelar passando por Elysium e A Estrada, os protagonistas são quase sempre brancos, heterossexuais e salvadores, como se fossem a última garantia de humanidade em meio ao caos. Nos blockbusters de destruição em massa, como 2012 ou O Dia Depois de Amanhã, a diversidade até aparece, mas diluída, nunca no comando das narrativas centrais. É quase como se o futuro só pudesse ser imaginado a partir do mesmo rosto, do mesmo corpo e do mesmo repertório cultural.
Adam Roberts, no livro A Verdadeira História da Ficção Científica, fala sobre isso. A ficção científica, e dá pra esticar isso pras distopias e narrativas de fim do mundo no geral, nasceu colada ao pensamento colonialista, europeu, masculino e branco. Não é surpresa que as narrativas sobre o futuro continuem sendo recicladas com esse molde. O mundo pode acabar, mas o privilégio não.
Mas aí vem gente como Octavia Butler e vira tudo de cabeça pra baixo. Ela escreve futuros onde os personagens negros não só existem, mas são o centro da mudança. “Toda história de mudança é, no fim das contas, uma história sobre sobrevivência”, ela escreveu. E não é sobrevivência como figurante. É sobrevivência como quem funda uma nova lógica, um novo modo de viver. O que Butler faz não é só colocar pessoas negras no futuro. É dar a elas o direito de imaginá-lo, de criá-lo, de recomeçar.
E esse gesto de Butler ecoa em outras narrativas afrofuturistas que tentam abrir espaço para imaginar mundos além do "branco salvador". Space Is the Place (1974), de Sun Ra, já pregava que o povo negro precisaria inventar outro planeta para existir em liberdade. Décadas depois, Neptune Frost (2021) vai pelo mesmo caminho, costurando espiritualidade africana e revolução digital em uma narrativa que parece se passar depois do fim do mundo, mas que, na real, é sobre começar outro. São filmes que, em maior ou menor medida, deslocam a lógica de que o amanhã só existe para alguns. Como lembra Nataly Nery, o afrofuturismo é a ideia radical de que negros estarão vivos no futuro e, mais do que isso, terão protagonismo, voz e agência nesse amanhã que o cinema tradicional insiste em negar.
É nesse ponto que o afrofuturismo mostra sua força. A pesquisadora Kênia Freitas, resume bem: “Gosto de uma definição curta que é a de pensar o afrofuturismo como a junção entre narrativas, as obras de ficção especulativa e a autoria e perspectivas negras. Juntando as duas coisas você tem o afrofuturismo”. Não se trata apenas de estética, mas de imaginar futuros onde pessoas negras não estão na margem, mas no centro, elaborando e disputando o que significa sobreviver, resistir e reinventar a vida após a catástrofe.
E ainda como lembra a mesma Kênia Freitas, “a gente precisaria de fato construir, trazer, resgatar pensamentos. Não para substituir uma centralidade por outra, mas para que exista outra perspectiva que amplie essa possibilidade da gente construir conhecimento de fato plural. Principalmente quando falamos de resgate de pensamentos matriarcais”. É justamente nesse resgate que o afrofuturismo ganha densidade, porque não se trata só de criar naves, cidades futuristas ou máquinas do tempo, mas de imaginar quais ideias, saberes e memórias vão viajar para o futuro junto com a humanidade.
Enquanto Hollywood insiste em nos vender a imagem de que o último humano sobrevivente é sempre um sujeito branco empoeirado e heroico, narrativas afrofuturistas e também obras independentes como Sertão 2138, lembram que o futuro pode (e precisa) ser múltiplo. Porque se a imaginação do amanhã continuar se repetindo com as mesmas exclusões de sempre, talvez o que esteja realmente em extinção não seja a humanidade, mas a nossa capacidade de inventar um futuro que valha a pena.
---
Se curte meu trabalho, que tal me pagar um cafezinho? Além de aquecer o coração, ajuda a manter a criatividade cafeinada e eu fico agradecida até a última gota!
Comentários
Postar um comentário