A Vida de Chuck: fragmentos de um homem comum

Assistir a uma obra de Mike Flanagan adaptando Stephen King já virou uma experiência curiosa pra mim. Não vou só pelo terror, pelo susto ou pela atmosfera sombria que o autor costuma carregar em seus trabalhos, vou também porque sei que Flanagan, mais do que qualquer outro diretor recente, parece entender que King é também um cronista da vida comum, dos dramas pequenos e das emoções mais banais, onde justamente mora a força de suas histórias. A Vida de Chuck talvez seja o maior exemplo disso até agora, porque abraça de frente esse lado mais brega, cotidiano e ao mesmo tempo cósmico do escritor.

O filme adapta o conto homônimo publicado em 2020 dentro do livro Com Sangue, e faz isso com uma liberdade que só alguém confortável nesse universo poderia ter. Não é a primeira vez que Flanagan se aproxima de King, ele já dirigiu Jogo Perigoso (2017), um dos trabalhos mais inventivos ao traduzir para o cinema uma narrativa quase toda interna, e Doutor Sono (2019), que conseguiu o impossível, ser uma continuação de O Iluminado (1980) respeitando tanto o livro de King quanto o filme de Kubrick. Nessas duas experiências, Flanagan mostrou que sabe lidar com as contradições entre texto e imagem, entre drama humano e sobrenatural. Agora, nesse novo longa, ele se permite ser ainda mais livre, porque a história já nasce fragmentada e lírica.

A estrutura é dividida em três atos, mas invertida, como se a vida fosse contada de trás pra frente. No primeiro, acompanhamos um mundo prestes a acabar, não de forma explosiva, mas silenciosa, melancólica. Cartazes luminosos anunciam “Três atos da vida de Chuck”, como se o planeta inteiro tivesse se transformado em palco da existência de um homem aparentemente comum. O segundo nos leva a um encontro em meio à juventude, num ritmo mais contemplativo, quase musical. O último nos mostra a infância, onde tudo ainda era possível. É bonito porque escapa da narrativa clássica, e mesmo assim nunca deixa de ser acessível.

O elenco ajuda muito a tornar essa viagem emocional crível. Tom Hiddleston interpreta Chuck com aquela doçura contida que só ele sabe entregar, fazendo a gente acreditar que por trás do rosto banal desse sujeito existe um universo inteiro de memórias e afetos. Mark Hamill aparece em um papel secundário, lembrando a cada cena que é muito mais do que um ícone nerd. Matthew Lillard e David Dastmalchian entram rapidamente em cena oferecendo comentários que oscilam entre o trágico e o cômico, dando mais textura ao enredo. É somente quando as pistas do Ato Três convergem que o quadro de Chuck começa a se completar, e a narração em voz off de Nick Offerman costura essa percepção de maneira quase literária. Há ainda o professor Marty, vivido por Chiwetel Ejiofor, e a enfermeira Felicia, de Karen Gillan, personagens que funcionam como âncoras emocionais, permitindo que a jornada íntima de Chuck encontre ressonância em figuras que nos parecem familiares.

Ainda assim, tenho minhas ressalvas quanto ao desenvolvimento, que para mim perde força à medida que caminha para a conclusão. O Ato 3, exibido no início do filme, é o que mais me agrada, justamente por construir uma atmosfera hipnótica mesmo sem trazer grandes revelações. É nesse ponto que o colapso do mundo se funde ao mistério sobre quem foi Chuck Krantz, e essa combinação gera um impacto imediato e envolvente. O segundo ato ainda me agrada, pois ganha vida com a cena da dança, adorável e essencial, já que é ali que passamos a conhecer Chuck de verdade, como indivíduo e não apenas como uma projeção. O problema, para mim, vem no último ato. Ao revisitar a infância do protagonista, Flanagan aposta em uma delicadeza visual e emocional que até funciona em alguns momentos, mas acaba se alongando demais. A dita mensagem, que já estava clara, é repetida e o que deveria ser o clímax soa arrastado. O efeito parece ser de  uma poesia que insiste em se prolongar depois de já ter sido dita, diminuindo o impacto em vez de intensificá-lo.

E aí eu lembro que, se tem algo que Flanagan entende é que o horror de King não é feito só de monstros, mas de lembranças, de fragilidades, de gente vivendo e tentando fazer sentido das próprias histórias. É brega? É. É piegas? Muito. Mas, King também é e Flanagan abraça isso sem medo. Ele entrega um filme que pode até dividir opiniões, mas que nunca soa falso. Eu saí da sessão pensando justamente em como a vida é feita de pequenas danças, encontros breves, pequenos universos e escolhas banais, mesmo quando o universo maior conspira contra. E talvez não haja nada mais assustador, e mais belo, do que isso.

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