O Último Azul: contra o descarte, pelo direito ao agora

Em muitas ficções científicas, o etarismo aparece travestido de avanço civilizatório. É a velha fórmula de imaginar sociedades futuras que precisam decidir compulsoriamente o destino dos mais velhos: aposentadorias forçadas, mortes programadas, isolamentos disfarçados de benevolência. Há sempre um raciocínio prático, uma lógica de eficiência, como se a velhice fosse um fardo coletivo a ser resolvido com políticas de contenção. O Último Azul, de Gabriel Mascaro, se insere nesse imaginário, mas desloca o problema para um território muito brasileiro, feito de rio, floresta, sonhos e corpos que insistem em continuar fluindo.

Não é novidade que Mascaro se interesse por essas brechas sociais. Desde Um Lugar ao Sol (2009), passando pelo olhar íntimo de Doméstica (2012), pelo futurismo sexual de Boi Neon (2015), até a ironia política de Divino Amor (2019), o cineasta vem investigando diferentes Brasis, sempre atento a como os privilégios, o  desejo, o trabalho, a fé ou a idade se tornam arenas de disputa simbólica. O Último Azul dá continuidade a esse percurso, agora com um aceno ainda mais distópico e carregado de reconhecimento: venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim, conquistou prêmio em Guadalajara, no México, foi exibido na noite de estreia do Festival de Gramado, chega essa semana ao Recife em pré-estreias e se prepara para estrear em circuito nacional no dia 28 de agosto com distribuição da Vitrine Filmes.

Tereza (Denise Weinberg), aos 77 anos, passou toda a sua vida trabalhando e vivendo em uma pequena cidade industrial na Amazônia, até que uma ordem oficial do governo feita para maximizar a produtividade econômica, muda tudo: ela deve se mudar para uma Colônia pensada exclusivamente para idosos. O local é apresentado como um verdadeiro paraíso, lazer garantido, descanso custeado pelo Estado, férias eternas disfarçadas de cuidado e até um auxílio para o filho que passa a ter total responsabilidade pelo familiar idoso, no caso de Tereza, é sua única filha interpretada por Clarissa Pinheiro. Mascaro filma essa promessa com ironia, quase como se fosse uma peça publicitária que se sustenta sozinha, porque a lógica de deslocamento compulsório já parece naturalizada. Para alguns personagens, a mudança é quase um sonho; para Tereza, e para quem resiste, é uma condenação disfarçada de fachada ensolarada. 

Tereza, bailarina e operária, mulher que construiu a vida em movimento, não aceita a ideia de reclusão voluntária, nem de parar de trabalhar. Ao invés de ceder à promessa de conforto, embarca numa travessia pelo rio Amazonas, território que o filme filma não apenas como espaço geográfico, mas como um organismo vivo, cheio de respirações e silêncios. Nesse deslocamento, há algo que me remeteu diretamente a Fitzcarraldo, de Werner Herzog, com sua obsessão em transportar um barco por terra, desafiando tanto a natureza quanto a própria lógica de sobrevivência. Mas, enquanto Herzog falava da ambição desmedida de um homem branco em impor sua ópera à floresta, Mascaro nos entrega um Norte sem estereótipos, com a jornada íntima de uma mulher que se recusa a ser descartada. Se em Fitzcarraldo o delírio é expansionista, em O Último Azul o gesto é de resistência.

Esse diálogo com a universalidade, a luta contra a obsolescência dos corpos, contra as decisões compulsórias de um Estado paternalista, nasce de um universo profundamente particular. Não poderia ser outro que não o Brasil, com seus rios monumentais, sua promessa de eternidade mascarada de propaganda oficial e sua forma peculiar de lidar com o envelhecimento. Ao escolher esse cenário, Mascaro fala do mundo todo, mas sem abrir mão da singularidade regional.

E é nesse mesmo Brasil que os muros gritam frases que atravessam o filme como contranarrativas à propaganda governamental: “gente velha não é mercadoria”, “devolvam meu avô”. Escritas precárias de protesto, pintadas à mão, que parecem mais potentes que qualquer peça publicitária. São rastros de um inconformismo popular, pequenas inscrições que lembram que nem todos aceitam o pacto de invisibilidade proposto pelo Estado. Essas frases funcionam como feridas abertas na paisagem, testemunhos da resistência anônima que sustenta o gesto de Tereza.

No caminho da protagonista que, antes de se entregar à Colônia, quer realizar o sonho de viajar de avião, é quando surge o barqueiro interpretado por Rodrigo Santoro, figura solitária que carrega em silêncio a perda de um amor. Ele é quase um fantasma, uma presença espectral que cruza o destino de Tereza com melancolia e a apresenta ao raro e famoso caracol da baba azul, cujo fluido alucinógeno promete revelar algumas coisas, inclusive o futuro. A atuação de Santoro não é expansiva, ao contrário, é feita de contenção, de gestos pequenos que só fazem sentido porque o filme está todo voltado para o que não é dito. Essa presença, breve, porém marcante, se encaixa no tom de O Último Azul, ou seja,  mais sugerido que entregue, mais assombro que catarse.

O filme, no entanto, parece brincar com a possibilidade de mergulhar no mágico, no fabular, sem nunca se deixar levar totalmente. Há lampejos de delírio, insinuações de que poderíamos atravessar para um território de fantasia plena, mas Mascaro recua, prefere manter a narrativa no limiar entre o concreto e o imaginado. Isso frustra um pouco, porque o próprio tema parece pedir esse salto, mas também funciona como escolha estética ao deixar a fantasia como lampejo em contraste com a dureza do mundo. 

No fundo, o que O Último Azul expõe é a crueldade de reduzir vidas a métricas de utilidade. O Estado controlador, veste a decisão de obrigar os mais velhos a partir como um presente e essa inversão de linguagem é talvez a parte mais assustadora do filme. Se a velhice já é cercada por invisibilidades e silêncios, aqui ela ganha a moldura de um espetáculo midiático com todos aplaudindo enquanto os corpos são deslocados para longe.

E é nesse ponto que o filme se torna maior que sua própria trama. A jornada de Tereza não é apenas individual, mas um lembrete universal de que gente velha não é mercadoria, nem estatística, nem peso. Ao cruzar o rio, ela não está só recusando a Colônia, está também afirmando que o envelhecer é também direito ao presente, não apenas ao passado ou à memória. Talvez por isso o filme insista em não se entregar completamente ao mágico. Porque, no fim, não é de fantasia que se trata, mas de um realismo doloroso, pois envelhecer continua sendo um ato de resistência e como gosta de repetir Queops, meu companheiro, só envelhece quem está vivo e Tereza está vivíssima!

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