A esta altura, vinte e três anos separam Extermínio: Evolução (28 Years Later, 2025) do filme que deu origem a essa linhagem de horrores infecciosos e desolação humanitária. O tempo não foi apenas um intervalo, mas uma gestação prolongada, em que Danny Boyle, Alex Garland e o diretor de fotografia Anthony Dod Mantle puderam observar o mundo se aproximar, de maneiras desconfortavelmente reais, da distopia febril imaginada lá em 2002. O novo filme retoma, em partes, não só o espírito do original, mas também sua textura: a inserção de trechos com crueza digital, imagens quase amadoras e documentais, a velocidade suja e cortante das cenas de violência, e a persistente sensação de que estamos acompanhando o fim de um mundo que já vimos começar a ruir.
Diferente dos grandes épicos pós apocalípticos que vieram depois (e, em certa medida, por causa de Extermínio), Evolução é um filme que recusa a grandiosidade das mitologias que tomaram conta dos filmes de zumbi. Ele quer seguir pessoas. Um pai, uma mãe, um filho, um médico, uma comunidade isolada que aprendeu a sobreviver e um percurso por uma natureza tomada de assalto. Como no primeiro filme, há estradas vazias, pontes quebradas, fragmentos de civilização, mas agora envoltos num tipo de melancolia que só o tempo acumulado e o desgaste da esperança conseguem sedimentar. A Grã-Bretanha vive sob a praga do vírus Rage há quase três décadas, e o mundo que restou é silencioso, modesto em seus restos. A trilha sonora reforça essas sensações: minimalista, ora dissonante, ora de uma beleza quase serena, como se o apocalipse tivesse passado e restasse apenas a memória dele.
É curioso como, ao longo da projeção, a gente quase não sente o tempo passar. Há um ritmo hipnótico, uma cadência contemplativa na forma de filmar que difere da urgência desesperada dos outros dois filmes, e isso pode desagradar aos mais puristas e saudosistas. Mas essa serenidade aparente é só a superfície. O horror ainda está ali, contido, prestes a se romper. A obra se constrói na tensão de um tempo suspenso, como se o mundo estivesse preso entre o que já acabou e o que ainda vai ruir de vez. Nesse sentido, a tagline do cartaz - o tempo não curou nada - não é apenas um recurso de marketing, mas quase uma tese do filme, pois, realmente não curou. O tempo passou, sim, mas o trauma permanece latente, espalhado na terra, nos corpos, nas árvores. O tempo só sedimentou a dor, tornando-a parte da paisagem. E isso talvez seja o aspecto mais assustador talvez seja perceber que a permanência é mais apavorante do que o colapso.
A trama é conduzida por Jamie, vivido por Aaron Taylor-Johnson, um jovem pai que chefia não só sua casa, mas também, digamos, o ritual de amadurecimento de seu filho, Spike (Alfie Williams). Os dois ultrapassam os portões da fortaleza da ilha em que moram, um lugar onde só há um caminho de terra que liga ao continente e, apenas quando a maré está baixa. O que eles encontram ao cruzar essa linha de contenção é um país tomado por silêncios, florestas que guardam horrores, infectados mutantes, cidades que já não pertencem aos humanos. Mas, também há encontros e o mais marcante deles é com o Dr. Kelson, interpretado por Ralph Fiennes, um homem à primeira vista estranho e possivelmente perigoso, mas que se revela, aos poucos, como uma presença ambígua e fascinante, alguém que encarna, de forma inquietante, uma espécie de ética num mundo que já esqueceu o que isso significa. A missão de Spike, após saber da existência de um médico, é levar sua mãe até ele para curá-la, seja de que doença for. A partir desse núcleo familiar e da figura enigmática de Kelson, o filme mergulha em temas como sobrevivência a longo prazo, reconstrução social e a constante negociação entre barbarismo e compaixão. Há algo profundamente comovente no modo como Boyle filma esse pequeno grupo tentando atravessar uma terra em frangalhos, como se cada passo fosse um gesto de resistência contra o esquecimento, mas, ainda assim, nos lembrando que da morte também nasce vida.
Há, em Extermínio: Evolução, uma escolha curiosa e deliberada de não ter pressa. E isso, para um filme que carrega no nome a expectativa do apocalipse, é um gesto arriscado e revelador. O tempo aqui não corre, ele pesa, assombra, se estende como um nevoeiro sobre os personagens e sobre o próprio espectador. É um filme que compreende que, depois de tantas narrativas pandêmicas e colapsos acelerados, talvez o verdadeiro horror esteja na permanência, na lentidão, no que não muda. Filmes como A Estrada (2009) ou Men (2022), trabalham com esse mesmo sentimento de tempo suspenso, onde o gênero é apenas moldura para se falar de erosão emocional, de luto que não cicatriza, de paisagens internas e externas marcadas pela estagnação. O terror, nesses casos, vem mais da espera, da repetição, daquilo que se arrasta em vez de explodir. Evolução entende isso e aposta num terror da memória, da perda contínua, da vida que continua apesar de tudo. A forma mais incômoda e persistente de fim.
Talvez a decisão mais feliz de do longa seja a concepção visual e física dos novos infectados rastejantes, uma espécie de variação degenerada dos monstros ágeis e animalescos que marcaram o primeiro filme. Eles agora se arrastam, espreitam, têm movimentos menos explosivos, se alimentam também do que há na terra, mas são ainda mais ameaçadores, como predadores silenciosos emboscando nas sombras. A presença deles é constante, mesmo quando ausente e o filme sabe trabalhar o espaço, a expectativa e o silêncio. A natureza, aqui, vira campo de tensão. As florestas, colinas e trilhas do norte da Inglaterra ganham uma dimensão de outro mundo, como se fossem terrenos mitológicos habitados por espectros de um passado que não acaba.
Esse mergulho mais introspectivo que o filme propõe pode decepcionar parte do público. Boyle e Garland entregam uma narrativa que se aproxima muito mais de um drama familiar do que de um terror apocalíptico tradicional. A ameaça zumbi existe, mas está longe de ser o centro. Para alguns, isso será um alívio. Para outros, uma frustração. Há momentos em que o filme parece conter o horror como quem guarda uma carta para outro ato, adiando o embate mais direto com a violência e a ação que tanto marcaram a série.
Mas talvez esse adiamento seja proposital. A segunda parte, já anunciada com direção de Nia DaCosta e o subtítulo O Templo dos Ossos, pode ser justamente onde essa energia contida se liberte. Talvez seja lá que a fúria do vírus retorne com toda sua força e que o colapso, enfim, alcance o clímax que os fãs do horror zumbi esperam há quase duas décadas. Evolução, nesse sentido, é mais prólogo do que conclusão. É um filme de passagem. E o final aberto acaba se tornando um chamado, pois como diz o cartaz: o tempo não curou nada. Ele só preparou terreno para o que ainda está por vir.
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