Quem define o que não vive, apaga o que não entende.
Este texto não é sobre uma pessoa específica, nem se propõe a julgar comportamentos individuais com base em acertos ou erros pontuais. É, antes, um convite a pensar e repensar certas dinâmicas em nível macro a partir de uma situação concreta e localizada.
Dias atrás, me enviaram o link de um comentário sobre um filme que vem ganhando certa projeção, inclusive fora da bolha tradicional do gênero ao qual pertence. A recepção tem sido majoritariamente positiva, atravessando públicos diversos. O comentário em questão era uma crítica negativa, furiosa, odiosa, o que por si só não é problema nenhum. Gostar ou não gostar faz parte do jogo, e todo mundo tem o direito de interpretar uma obra como quiser.
O desconforto, no entanto, veio do que estava além da crítica. Porque ali, entre argumentos e julgamentos, estava um gesto mais profundo e mais grave que me fez soltar a frase: vivi pra ver um crítico de cinema branco se colocando no lugar de definir o que é, e principalmente o que não é, cinema negro.
Não dá pra fingir surpresa. Mas ainda assim, revolta. Porque esse tipo de atitude revela algo muito maior: o quanto o espaço da crítica cinematográfica ainda é, em grande parte, branco, colonizado e autorreferente. Quando um crítico branco se posiciona como autoridade sobre o que constitui ou deixa de constituir o cinema negro, ele não está apenas emitindo uma opinião estética. Ele está, intencionalmente ou não, deslegitimando trajetórias, vozes, estéticas e histórias que não lhe pertencem.
Cinema negro não é apenas sobre ter pessoas negras em cena ou filmar com temática racial. Tampouco se limita à geografia da África ou à produção feita por pessoas negras em contextos específicos. Cinema negro é sobre autoria, perspectiva, linguagem, memória, ancestralidade, vivências. E, frequentemente, sobre resistência. É atravessado por territórios diversos, por experiências múltiplas, por modos de ver e fazer que não cabem nas categorias convencionais da crítica dominante.
É justamente por isso que falar em cinemas negros, no plural, é tão necessário. Essa pluralidade reconhece a existência de diferentes estéticas, intenções, territórios e jornadas que formam um tecido complexo, indisciplinado e em constante reinvenção. Reduzir tudo a uma única definição já seria problemático por si só. Ver essa definição partir de um lugar privilegiado, como o da crítica branca, que historicamente ocupou o centro da legitimação cultural, é ainda mais sintomático das estruturas excludentes que seguem operando no campo do cinema e da crítica.
Esse gesto de definir de fora, com pretensa neutralidade e suposto distanciamento técnico, é um gesto colonizador. É o mesmo olhar que exotiza, hierarquiza, silencia e enquadra. E, pior, muitas vezes isso vem revestido de linguagem acadêmica ou de suposta objetividade analítica, como se existisse uma forma correta, e portanto superior, de falar sobre cinema. Uma forma que quase nunca considera saberes e experiências negras como válidas por si só.
Digo aqui que um crítico branco não está proibido de falar sobre cinema negro. Longe de mim ser a guardiã de portões. A provocação não é sobre interditar o discurso, mas sobre responsabilidade e lugar de fala. Falar sobre algo é diferente de falar a partir dele. O problema começa quando esse olhar de fora tenta se impor como definitivo, quando ignora contextos, desloca sentidos e, pior, se posiciona como árbitro do que vale ou não dentro de expressões que não nascem da sua experiência.
Falar sobre cinema negro exige escuta. Exige reconhecimento das limitações do próprio lugar. Exige saber que nem tudo precisa ser traduzido para a lógica dominante para ter valor. É nesse ponto que a crítica branca frequentemente falha: porque mais do que conversar, ela tenta enquadrar. Mais do que dialogar, ela quer definir.
E definir, nesse caso, é um ato de poder. É repetir a história da legitimação colonial, onde só passa o que cabe no molde, só vale o que pode ser nomeado por quem sempre teve voz. O convite, então, não é ao silêncio é à escuta atenta, ao deslocamento da centralidade, à construção de um outro tipo de crítica. Uma que reconheça que nem tudo se mede com régua branca. Uma que entenda que presença não é posse, que interesse não é autoridade.
Falar de cinema negro, se não for desde o respeito profundo à autoria, à ancestralidade, à multiplicidade dos territórios negros, corre o risco de virar só mais uma repetição da história que a gente tá justamente tentando reescrever.
Porque, sinceramente, já passou da hora de entender que não existe o cinema negro. Existem os cinemas negros. No plural mesmo. Nossas vivências não são uma só. Nossas estéticas não seguem uma única lógica. Nossas histórias vêm de lugares diferentes, falam de coisas múltiplas: dor, beleza, raiva, afeto, cotidiano, transcendência, invenção. Tudo isso está em jogo quando falamos de cinema feito por pessoas negras. Para além dos temas e das técnicas, está em jogo uma relação com o mundo.
Só que o espaço da crítica ainda é aquele velho clubinho branco, elitista, acostumado a olhar de cima e a definir valor a partir do próprio eixo. Quando a gente aparece com outro olhar, outra linguagem, outra lógica de construção narrativa e estética, a reação imediata é enquadrar, categorizar, dizer o que serve e o que não serve, o que é válido ou não. Ignoram completamente que falar de cinemas negros sem considerar autoria, contexto e perspectiva é, no mínimo, superficial. No máximo, violento.
E isso não é só sobre vaidade ou ego de crítico. É sobre poder. É sobre quem pode dizer, quem tem o poder de validar, de legitimar, de contar histórias e ser ouvido. Enquanto essas estruturas não forem questionadas e desmanteladas, seguiremos tendo que reafirmar sempre o óbvio e isso é desgastante. Porém, sigo falando. Porque se a gente não se escuta, não se reconhece, não constrói espaços para nossas narrativas a partir das nossas experiências, quem vai?
É sempre a mesma panela e os mesmos argumentos, todo dia desisto um pouco da crítica por isso, por não me contemplar.
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