Kasa Branca, dirigido por Luciano Vidigal, é mais do que um filme: é uma experiência emocional que nos transporta para a periferia do Rio de Janeiro com uma sensibilidade rara. A obra acompanha Dé (Big Jaum), um jovem negro que enfrenta o peso da notícia de que sua avó, Dona Almerinda (Teca Pereira), figura central, está nos estágios finais da doença de Alzheimer. Com a ajuda de seus dois melhores amigos, Martins (Ramon Francisco) e Adrianim (Diego Francisco), ele busca forças para lidar com essa despedida iminente, enquanto aprende a valorizar os pequenos momentos e as conexões que realmente importam.
Vidigal nos presenteia com uma história universal e ao mesmo tempo profundamente enraizada na realidade brasileira. Temas como amizade, família, perda e resiliência são explorados com autenticidade e delicadeza, criando um retrato amplo, sensível e tridimensional da juventude negra e periférica. A relação entre Dé e sua avó, se desenha como o coração da narrativa, prometendo momentos carregados de emoção e profundidade. Quem viveu algo parecido e vai assistir ao filme, não tem como não ficar alheio e não se deixar afetar pelo que acontece em tela. O diretor, que também é roteirista e se baseou em uma historia real, acerta em cheio ao contrabalançar a dureza da realidade com a força do amor, da cumplicidade e da esperança.
Em um dos momentos mais simbólicos do filme, Dé leva sua avó para ver o trem passar todos os dias. Esse ato simples, mas repetido, pode revelar um ato pela busca de alguma memória, lembrança ou conexão emocional com o passado da idosa. Há alguns simbolismo no ato e no trem, que podemos refletir como a inevitável passagem do tempo e da perda. Para Dona Almerinda, o trem se torna uma metáfora para a perda de controle sobre sua própria história, enquanto para Dé, é uma tentativa de criar um vínculo afetivo seguro e reconfortante, em meio à confusão da doença. Esse gesto de levar a avó para ver o trem, é uma forma de resgatar, dentro daquilo que ainda é possível, uma parte de normalidade e afeto, refletindo a força do amor e o esforço de preservação de laços essenciais. Isso é ponderado também quando o neto, ao ver fotos antigas de sua avó, a leva em lugares que ela já esteve, ou só ou com um antigo amor. Muito bonito.
Os amigos de Dé desempenham um papel fundamental no enredo, oferecendo suporte e representando o poder transformador da amizade em tempos difíceis. Eles trazem leveza e alegria ao enredo, criando momentos de cumplicidade que contrastam com o peso emocional do filme. Essa escolha não apenas enriquece a trama, mas também desafia convenções e rompe com tropos estereotipados que marcaram a representação de jovens negros no cinema. É interessante notar que, em alguns momentos, ficamos tensos, apreensivos, como se esperássemos que alguma desgraça fosse acontecer. Isso reflete como fomos condicionados por histórias que sempre associaram corpos negros à violência e à tragédia, o que Kasa Branca desconstrói com maestria. Simultaneamente, a periferia do Rio de Janeiro ganha protagonismo como um cenário vivo e profundamente conectado à narrativa que, sob o olhar do diretor, ganha autenticidade, mas sem cair no reducionismo simplista. Em meio às adversidades e à rotina de outros personagens, há beleza e humanidade nos detalhes do cotidiano, o que adiciona uma dimensão social poderosa ao filme. Não posso deixar de destacar a trilha sonora de Fernando Aranha e Guga Bruno, que é um ponto central e fundamental na trama. Em certos momentos, ela transmite a leveza que suaviza o ambiente, enquanto, em outros, se carrega de urgência, intensificando o clima de tensão. A beleza das composições está justamente na maneira como em outros momentos a música se integra perfeitamente a essas diferentes atmosferas, alternando entre os extremos de forma fluida e sem perder o equilíbrio, somos completamente envolvidos com a jornada dos personagens.
O cinema negro brasileiro está cada vez mais consolidado como um espaço de resistência e reinvenção, e Kasa Branca se soma a essa reconstrução com uma força singular, assim como Cabeça de Nêgo (2020, Déo Cardoso) e os filmes dos cineastas mineiros da Filmes de Plásticos, apenas para citar alguns. Luciano Vidigal entrega uma obra tocante que não apenas ressignifica as narrativas sobre favelas e jovens negros, mas também reafirma o poder transformador do cinema e do protagonismo negro, tanto na frente das câmeras quanto nos bastidores, isso é reafirmado pela fala do próprio diretor que diz: “É um filme que tem um protagonismo negro no lugar do objeto, que são os atores, no lugar do sujeito, eu como diretor. Então, você tem a figura preta ali como protagonista no elenco e também na criação. E a gente que faz cinema independente, cinema preto, busca essa relação horizontal com o audiovisual brasileiro. E sempre no objetivo de somar, de trazer essa diversidade potente e cultural que tem o nosso país”. É impossível sair indiferente dessa experiência, pois o filme nos lembra que as vidas negras são ricas, complexas e profundamente humanas, e que o cinema é uma poderosa ferramenta para evidenciá-las e ressignificá-las.
Visto em cabine através de convite da Sinny Assessoria, Kasa Branca estreia nos cinemas em 30 de janeiro pela Sessão Vitrine Petrobrás, o filme ainda conta no elenco com Diego Francisco, Gi Fernandes, Ramon Francisco, Babu Santana, Roberta Rodrigues, Ingrid Ranieri, Otavio Muller, L7nnon, Kibba.
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