Em março do ano passado escrevi sobre um filme nigeriano em formato de antologia chamado Juju Stories e falei do quanto gosto e acho rico esse estilo de contar histórias. Como se não bastasse ser um filme formado por pequenos curtas, ainda nos faz entrar em contato com uma cultura da qual ainda é negligenciada e desconhecida por parte do ocidente. Pois, esses dias, me deparei com uma série também em antologia de seis episódios chamada Curtas do Folclore Africano (ou African Folktales), que apresenta seis realizadores de países diversos que venceram um concurso de curtas metragens da UNESCO e da Netflix destacando futuros talentos africanos. As histórias são apresentadas de uma forma atemporal, reimaginada e multilíngue alguns dos mitos e folclores do continente, abordando alguns temas pertinentes como ecologia, luto, amor, misticismo, violência doméstica e de gênero, tecnologia e etc. São abordagens que focam basicamente nas relações humanas e sua relação com a natureza, contados de uma maneira mais contemporânea.
O primeiro curta da antologia vem de Uganda, Katera da Ilha da Punição é dirigido por Loukman Ali que trabalha também como diretor de fotografia, roteirista, produtor e designer gráfico em seu país e já tem um currículo do qual não se encaixa diretamente em estreante. Ele já teve filmes de destaque circulando em festivais e, inclusive, já foi premiado. Em Katera, Loukman já nos fisga para continuar querendo saber mais das outras que virão. Aqui, temos uma história que se passa nos primórdios de Uganda, onde missionários e colonos ainda chegavam com seus abusos, mandos e desmandos. Mulheres que engravidavam fora do casamento eram deixadas numa ilha amarradas até morrerem. Uma espécie de punição pela perda da virgindade, perda de valor de um possível noivado e por envergonhar a família. O curta tem 27 minutos e mostra de forma central essa mulher Katera que é resgatada dessa ilha por um homem e nutre um sentimento de vingança pelo militar que fez isso com ela e roubou as terras de seu pai. O curta toca em aspectos sobre maternidade e luto e tem uma aura épica que lembra os velhos faroestes italianos musicados por Ennio Morricone. Baseado em eventos históricos verdadeiros que acabou virando um conto popular reimaginado e bem fotografado nas mãos de Ali.
Avaliação: ⭐⭐⭐⭐⭐
A Escolha de Halima mescla tradição com futurismo ao abordar casamentos arranjados com realidade virtual e inteligência artificial. Da diretora nigeriana Korede Azeez, que iniciou sua carreira em 2018, ano em que dirigiu seu primeiro curta-metragem e desde então já realizou mais dois curtas e um longa chamado “It Blooms in June”. Korede tem como uma das missões com o audiovisual, partilhar com o mundo a riqueza de histórias que a África tem e no curta que integra a antologia, conta-se que em algum tempo não determinado, houve uma migração em massa de 99% da população terrestre para o mundo virtual de Napata. O 1% que restou resiste em permanecer nas tradições e se recusa a se entregar ao controle das IAs. Uma fantasia que mistura ficção científica com a tradição, ainda vigente em partes da África, dos casamentos arranjados. Halima se nega a casar com quem seus pais desejam e ela tenta fugir para esse mundo virtual onde tudo que acontece é desejado minuciosamente pela mente da pessoa. Korede mescla bem essa proposta de unir duas realidades, embora uma delas ainda persista na vida real e acabe virando mote para uma ficção especulativa, ideias as quais ainda precisam ser exploradas.
Avaliação: ⭐⭐⭐1/2
Anyango e o Ogro mostra uma mãe e seus três filhos tentando fugir de uma marido e pai abusador e violento. A diretora queniana Voline Ogutu ambienta seu curta a partir da realidade de muitas mulheres, não só em África, mas mundo afora, que são as vítimas de violência doméstica e repetem o ciclo de traumas e agressões. Nesta realidade, o governo do Quênia dividiu uma comunidade em Zona Azul, lugar de família, onde mulheres são felizes e vivem a vida conjugal dos sonhos, e Zona Cinzenta, que é o ambiente onde vivem as mulheres que não se casaram, se divorciaram ou tiveram filhos fora do casamento. Na Zona Azul as casas são bonitas, chiques, bem decoradas e a comida é farta. Já na Cinzenta as mulheres e crianças brigam para obterem suas refeições. Em forma de fábula e se ancorando numa lenda popular, Voline debate também sobre conformação e pressão social. O que vale mais perante a sociedade, a proteção de sua integridade e dos filhos ou uma vida de aparências porque a sociedade te cobra isso?
Avaliação ⭐⭐⭐
Vindo da Mauritânia, o quarto curta é O Gênio da Inimizade e foi dirigido por Mohamed Echkouna que traz para a trama a conhecida entidade dos Djinns, uma figura poderosa e bastante presente nas fábulas, mitos e folclores árabes. Diz a lenda que os gênios são espíritos que circulam pela Terra, mas que não são vistos pelos humanos e podem assumir diversas formas e poderes, sendo eles maléficos ou benéficos. Aqui, o Djinn é confrontado por uma avó que teve um encontro traumático no passado com esse mesmo Djinn enquanto era um bebê. Mais de 70 anos depois ela agora tem que enfrentar seus próprios medos e seu passado. Enquanto isso, como o título já diz, o gênio vai deixando pelo caminho seu rastro de pequenas tragédias em uma trama quase sem diálogos. A forma como o Djinn é retratado achei bem interessante e ajuda na formação de um certo suspense, mesmo que a condução do curta peque em alguns momentos em desenvolvimento e resoluções.
Avaliação ⭐⭐⭐
O quinto curta vem da Tanzânia com direção de Walt Mzengi. Nele, temos a jovem Katope que foi moldada no barro pela mãe e a sua existência coincide com a chegada do período da seca no lugar. Após dez anos de criação, Katope é visitada por um estranho pássaro enquanto está deitada no deserto, e tal pássaro seria supostamente o pássaro que traria de volta a chuva. Mas a comunidade de Katope organiza um ritual para o deus da chuva e ela é levada até lá. Uma lenda contada de forma lúdica com belas imagens que contrastam ao mostrar o que é realmente uma seca.
Avaliação ⭐⭐⭐1/2
MaMlambo é o sexto e último curta da antologia e mostra o salto de Amanda para tirar a própria vida, ao mesmo tempo em que ganha uma outra vida ao ser salva pelo ser místico que vive nos rios chamado Mlambo. Sua missão é salvar mulheres que estão em apuros e o curta deixa ao final uma bonita e poderosa mensagem de união, força e perseverança. Dirigido pela sul-africana Goobisa Yako, traz a lenda para a problemática contemporânea do genocídio feminino como epidemia. A entidade que a princípio se mostra um ser misterioso, vai se revelando aos poucos na mesma medida em que fortalece Amanda em sua nova chance de viver. Pode soar panfletário demais e raso, mas ainda assim é uma história satisfatória.
Avaliação ⭐⭐⭐
No geral, a antologia de curtas é uma produção que se mostra interessante e, mesmo que alguns dos realizadores esteja praticamente estreando na direção, é notável o talento e vontade de contar suas histórias. . Percebemos neles, uma certa atenção tanto para as demandas atuais e globais como um olhar atento para dentro de suas próprias raízes e culturas. Se utilizar da fantasia, da ficção, da fábula, do suspense, mostra que o cinema de gênero está aberto para qualquer tipo de abordagem.
Curtas do Folclore Africano é uma ótima coleção para quem quer se aventurar em conhecer outros mundos além do ocidental e mainstream.
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