"(...) Então, senhoras e senhores jurados, eu lhes digo que nós, mulheres, somos todas Quimeras. Levaremos dentro de nós o traço de nossas mães e de nossas filhas, e elas levarão outras mães e outras filhas. É uma rede infinita. Nós somos, em algum lugar, todas monstros. Mas monstros terrivelmente humanos”.*
Verdades podem ser complexas. Há de fato verdade absoluta? Claro que não e isso depende muito do contexto cultural e individual a que pertencemos. Esse é um debate que ocupa boa parte das discussões entre estudiosos, filósofos e pensadores ao longo do tempo e que Alice Diop traz em Saint Omer, uma abordagem complexa e fascinante no seu recente e primeiro filme de ficção.
Alice, que é francesa, mas descende de pais senegaleses que emigraram para a França durante a década de 1960, tem uma carreira sólida na realização de documentários, sempre com foco na urbanidade francesa, relacionamentos e de como populações marginalizadas, refugiados ou imigrantes africanos, sejam eles jovens, da classe trabalhadora ou aspirantes a artistas, vivem nessa urbanidade e dinâmica francesa/parisiense. Como por exemplo em "Nós" (2020), um doc que passeia pelos subúrbios de Paris dando voz à historias diversas com narrativas que geralmente não costumam ser dominantes, ou em "A Morte de Danton" (2011), que segue um estudante negro de teatro que sonha em interpretar Danton nos palcos, mas percebe que primeiro tem que enfrentar os obstáculos de personagens e estereótipos de sua cor. Entretanto, sem abandonar seu estilo, Diop se baseia numa história real para sua estreia na ficção, o caso de um crime cometido por uma mulher senegalesa que matou seu próprio bebê, mas a versão da diretora, traz nuances nem sempre sutis de uma sociedade hostil às verdades das quais não lhes pertencem, desconhecem ou não entendem.
A trama acompanha Rama (Kayije Kagame), uma romancista e professora de literatura que tem problemas de relacionamento com a mãe. Isso vai ficando claro ao longo do filme. Ela viaja de Paris para Saint Omer para acompanhar o julgamento de Laurence Coly (Guslagie Malanga) e escrever sobre adaptando o mito da Medeia para uma história da Medeia contemporânea. A Medeia era uma princesa e feiticeira, personagem-título da tragédia escrita em 431 a.C. pelo poeta e dramaturgo Eurípides, conhecida por ter sacrificado os dois filhos em vingança à traição do esposo Jasão com Glauce, mais jovem e menos bárbara, filha de Creonte, rei de Corinto. Seu caráter complexo e suas ações extremas são examinados em detalhes em adaptações para peças de teatro, literatura e cinema. Ela é um exemplo notável de uma figura trágica na mitologia grega.
Outra figura mitológica presente no filme de Alice Diop, é a Quimera, uma criatura mística que se caracteriza por carregar a forma hibrida de dois ou mais animais, sendo frequentemente interpretada simbolicamente como uma representação do desconhecido, do incontrolável e do sobrenatural, mas também pode representar a ideia de algo que é impossível ou aterrorizante de se enfrentar.
O julgamento envolve Coly, uma estudante e imigrante senegalesa acusada de abandonar sua filha de 15 meses numa praia para ser levada pela maré. Não demora, e logo Rama se vê entrelaçada na história e semelhança de vida com Laurence. Rama está grávida de quatro meses e assim como ela, Laurence também não tem uma relação amistosa com a mãe. É quando Rama vai se sentindo cada vez mais ansiosa com sua situação, ao acompanhar como Coly se sentia com suas relações, seja convivendo com seus colegas de faculdade, com sua família, ou com seu relacionamento amoroso com um homem branco mais velho e casado.
No julgamento, Coly que testemunha e responde a todas as perguntas da juíza, anseia, assim como nós, por uma única resposta que ela não pode responder: por qual motivo ela matou a própria filha. Mesmo admitindo que fez, ela não sabe, pegando todo mundo de surpresa e já tendo toda minha atenção. A partir daí o filme não nos dá muitas novidades em termos de narrativa e ação, na verdade, como já comentei, pouco importa para Diop e para a trama esse tipo de recurso. O depoimento de Coly, tudo que ela fala e da forma como fala, é de um fascínio e de uma frieza tão grande que a gente se vê como Rama, completamente entrelaçada naquela história carregada de hediondez e de humanidade. Ponto demais para Diop, sua câmera e, claro, para Guslagie Malanda que empresta naturalidade na fala, no olhar e no sentir de sua personagem Coly.
Entretanto, o olhar e a câmera de Diop são ajustados em um determinado momento do tribunal, fazendo com que a nossa perspectiva de olhar aquela história também se ajuste. Eu, que já estava totalmente entregue àquela trama, fui conquistada por completo e entendi do porque Alice Diop tem se tornado uma das realizadoras em que mais anseio quando se anuncia um trabalho novo. É tudo muito franco e muito aberto, nos fazendo entender que existem verdades e verdades e nem sempre elas poderão ser entendidas.
Paralelo a tudo isso que acontece no tribunal, o caso de Coly passa a ressoar em Rama e é em momentos de flashbacks, com imagens dela na infância com a mãe, que passamos a entender como Rama vem recebendo aquela carga de informação e como vai adaptar aquilo para seu romance, a luta, a relação de dor e as tragédias que carregam mães e filhas negras. Será ela a próxima a viver tudo isso? Foi ela a viver isso em algum tempo? É Laurence uma criminosa ou uma vítima das situações? Não saberemos as respostas, assim como também não saberemos o veredito final em Saint Omer. Há verdades que não são fáceis de serem ditas e muitas vezes nem precisam ser ditas.
Comentários
Postar um comentário